Brasil defenderá na ONU posição contrária à redução do Controle Internacional sobre a Cannabis

10 de julho de 202021min24
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O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) realizou reunião extraordinária, na 2ª feira, dia 06 de julho de 2020, aprovando importantes pontos de pauta, que fortalecerão a Política sobre Drogas no Brasil.

Em um dos pontos avaliados, o CONAD rechaçou todas as seis recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), feitas à Comissão de Narcóticos da Organização das Nações Unidas (ONU), para a flexibilização e redução do controle internacional sobre a cannabis e substâncias relacionadas. Diante do claro perigo que eventual diminuição do controle da cannabis e de substâncias relacionadas causaria para toda a sociedade brasileira, o CONAD posicionou-se de maneira contrária a todas as recomendações da OMS. A decisão foi respaldada por Nota Técnica apresentada ao CONAD pela Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (SENAPRED) do Ministério da Cidadania, que expôs as razões técnicas e científicas contrárias à redução do controle internacional sobre a cannabis e substâncias relacionadas. Tal decisão do CONAD é de suma importância, pois define a posição que o Governo brasileiro apresentará em dezembro deste ano de 2020, quando a Comissão de Narcóticos da ONU se reunirá para votar o tema. Com isso, o Brasil posiciona-se internacionalmente de maneira clara contra a redução do controle da cannabis e de substâncias relacionadas, e reitera sua posição em prol da construção de uma sociedade protegida das drogas, em favor da vida, das pessoas e das famílias. Vale ressaltar ainda que a “Nova Política Nacional sobre Drogas”, publicada pelo Decreto Presidencial No. 9761, em abril do ano passado, colocou, de modo inequívoco, posição contrária à liberação das drogas no Brasil, que é defendida pelo Governo Federal.

A decisão do CONAD ocorreu de maneira unânime, mostrando que o Conselho está trabalhando em sintonia para a construção de Políticas Públicas efetivas para o enfrentamento das drogas no país.

A ONU apresenta um sistema de controle internacional de substâncias psicotrópicas, que funciona por meio de Convenções Internacionais, sendo que seu cumprimento é mandatório e fiscalizado pela Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes, órgão da própria ONU. A Comissão de Narcóticos da ONU modifica regularmente as Listas das substâncias psicotrópicas controladas pelas Convenções Internacionais, considerando as recomendações da OMS. Em 24 de janeiro de 2019, a OMS apresentou ao Secretário-Geral da ONU seis recomendações, no que tange ao controle da cannabis e de substâncias relacionadas.

As recomendações realizadas pela OMS serão votadas na continuação da 63ª sessão da CND, que acontecerá em Viena, na Áustria, em dezembro de 2020. As alterações recomendadas pela OMS impactam duas Convenções Internacionais responsáveis pelo controle internacional de substâncias psicotrópicas. O Brasil é signatário das Convenções Internacionais apresentadas acima e também é membro da Comissão de Narcóticos da ONU, tendo direito a voto na sua 63ª sessão, que avaliará as recomendações da OMS. Assim, se aprovadas pela CND, as recomendações da OMS afetarão negativamente, no Brasil, o controle da cannabis e de substâncias relacionadas. Daí o fato de o país posicionar-se contra todas essas recomendações.

A situação descrita acima é especialmente preocupante, tendo em vista o cenário da cannabis em todo o mundo. Em 2019, o “Relatório Mundial sobre Drogas” do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) apontou a cannabis como a droga ilícita mais usada no mundo: o número de usuários aumentou aproximadamente 30%, de 1998 a 2017, atingindo cerca de 188 milhões de pessoas. Desse modo, um afrouxamento do controle sobre a cannabis e substâncias relacionadas piorará ainda mais o cenário do crescente uso recreativo dessas substâncias e suas devastadoras consequências para todo o conjunto social. Além disso, é importante ficar claro que o uso terapêutico dos componentes da cannabis ainda é extremamente restrito, contando com pouquíssimas evidências científicas. Assim, uma possível aprovação das recomendações da OMS pela CND dará também uma falsa ideia para a toda a sociedade internacional de que a cannabis apresenta incontestes propriedades terapêuticas, o que está muito longe de ser verdade.

Nesse cenário, o Conselho Federal de Medicina (CFM) liberou no Brasil apenas “o uso compassivo do canabidiol como terapêutica médica, exclusiva para o tratamento de epilepsias na infância e adolescência refratárias às terapias convencionais”, reiterando sua posição, em nota técnica publicada, em maio de 2019 (o canabidiol é uma das centenas de moléculas que compõem a cannabis). O Conselho Federal de Medicina (CFM), Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Academia Nacional de Neurologia (ABN) são entidades médicas que apresentam posição bastante clara sobre as restrições para o uso do canabidiol. Além disso, tais entidades não dão suporte para o uso terapêutico de qualquer outra molécula da cannabis. Em 2016, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CRMESP) publicou Nota Pública sobre o tema: “Cabe esclarecer que o termo ‘maconha medicinal’, embora tenha apelo cultural, não reflete o estado atual do conhecimento e o uso conforme esta designação não respeita os passos necessários, aceitos nacional e internacionalmente, para a aprovação de uma nova terapêutica…O CREMESP foi pioneiro no apoio à liberação do uso do canabidiol (canabinoide não psicoativo) para populações portadoras de epilepsias graves e refratárias da infância. No entanto, o CREMESP afirma não haver comprovações científicas de que haja algum uso efetivamente medicinal da maconha. O desenvolvimento de novos estudos que ofereçam evidências para a eventual utilização terapêutica de canabidiol ou outros canabinoides receberá apoio do CREMESP. Contudo, a aprovação, neste momento histórico, de usos na saúde de derivados de cannabis, para os quais os procedimentos consagrados para liberação de medicamentos não foram respeitados, merece repúdio e grande preocupação deste Conselho”.

Quando a efetividade real do uso terapêutico da cannabis e de seus derivados é avaliada, os resultados são bastante ruins. Vale aqui ressaltar que a maior parte dos estudos clínicos publicados apresenta baixa qualidade científica e metodológica. Até o presente momento, a imensa maioria dos artigos científicos de revisões da literatura e meta-análises realizadas sobre o tema mostram que os canabinóides (moléculas que compõem a cannabis), de maneira geral, não são efetivos para o tratamento das mais variadas condições clínicas; e nos pouquíssimos artigos de revisão da literatura e meta-análise que mostram pequenos resultados positivos, os autores sempre interpretam os dados com cautela, ponderando que o uso clínico dos canabinóides precisa ser melhor avaliado, em decorrência da pequena quantidade de estudos clínicos realizados, dos efeitos adversos dessas substâncias para a saúde dos pacientes, e das importantes limitações metodológicas dos estudos clínicos que os compõem. É também importante notar que não há evidências científicas que sustentem o uso terapêutico de óleos de cannabis. Os únicos resultados mais consistentes para o uso terapêutico de um canabinóide, no caso o canabidiol, vêm do tratamento de quadros epilépticos refratários, mostrando efeito modesto, porém consistente. Vale ainda ressaltar que não há evidências de segurança a longo prazo do uso de canabinóides, como o canabidiol. A preocupação é maior no caso de crianças e adolescentes, que apresentam seu sistema nervoso central em formação. Nessa faixa etária, existe, inclusive, maior potencial de risco no uso de canabinóides.

Por outro lado, estudos de revisão da literatura e meta-análises têm mostrado de maneira consistente que o uso recreativo de cannabis é importante fator de risco para o desenvolvimento de transtornos mentais graves, como psicoses (ex.: esquizofrenia) e transtornos do humor (ex.: mania). Além disso, o uso da cannabis aumenta o risco para suicídio e déficits cognitivos. Importante estudo publicado em 2015, e que fez resumo da literatura científica publicada nos últimos 20 anos, mostrou a ocorrência de importantes problemas pessoais e sociais decorrentes do uso de cannabis.

A Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes, órgão da própria ONU, em Relatório publicado no ano de 2018 (“Report of the International Narcotics Control Board for 2018”), apresentou importantes questões e sugestões que precisam ser levadas em consideração quando da apreciação das recomendações da OMS para flexibilizar a fiscalização sobre a cannabis e substâncias relacionadas. O órgão colocou que em alguns estados americanos a instituição de Programas de “cannabis medicinal” foi utilizada para advogar, no futuro, a legalização da droga para o uso não-medicinal, como se fosse uma etapa preparatória para sensibilizar a sociedade sobre ações subsequentes rumo à flexibilização de seu uso recreativo. Tal situação leva a uma diminuição da percepção de risco por parte da população dos graves problemas ocasionados pela cannabis, abrindo caminho para sua legalização, levando, consequentemente, ao aumento do consumo não-medicinal pela população: “Os programas de ‘cannabis medicinal’ em alguns estados dos EUA foram usados por defensores da legalização da maconha para promover a legalização do uso não-medicinal da cannabis nesses estados. A diminuição da percepção de risco do uso de maconha e a ativa propaganda sobre a sociedade da maconha pela indústria da cannabis apresentam grandes desafios na prevenção do uso de maconha entre os jovens. As alegações infundadas sobre os benefícios médicos da cannabis foram acompanhadas pela diminuição da percepção de risco do uso de cannabis entre jovens nos EUA. O uso de maconha por adultos nos estados dos EUA em que a maconha não-medicinal foi legalizada pode incentivar os adolescentes a usar a droga no momento em que seus cérebros são especialmente vulneráveis a seus efeitos adversos”.

Inicialmente, para que determinada substância seja utilizada de maneira terapêutica, existe a necessidade de que seja submetida a pesquisas científicas, que demonstrem sua segurança e efetividade para o uso clínico. Diante disso, não existe qualquer comprovação científica para o uso terapêutico da cannabis bruta. Quanto aos canabinóides, apenas o canabidiol encontra respaldo para o uso em convulsões na infância, de maneira adjuvante a outros medicamentos, e apenas quando outras abordagens terapêuticas se mostram inefetivas. Não existe indicação do uso do canabidiol como primeira escolha nessas condições clínicas, e seu uso não é indicado de maneira isolada, como monoterapia. Não há comprovação científica para o uso do canabidiol para o tratamento de pacientes que apresentem outras doenças. Vale ainda ressaltar que, em alguns estados americanos, alguns países da Europa e outros poucos países de outros continentes, houve uma proliferação de produtos alimentícios, de saúde e cosméticos que afirmam conter canabidiol e que são comercializados para usos terapêuticos ou médicos. Isso coloca os consumidores em risco, porque muitos desses produtos não provaram ainda ser seguros ou eficazes. A comercialização enganosa de tratamentos à base de cannabis e substâncias relacionadas, não comprovados cientificamente, também suscita preocupações significavas à saúde pública, pois pacientes e outros consumidores podem ser influenciados a não usar terapias cientificamente aprovadas, seguras e clinicamente efetivas para tratar doenças graves e até fatais. Além disso, de acordo com o “Food and Drug Administration” (FDA) americano, existem muitas perguntas não respondidas e lacunas de dados sobre a toxicidade do canabidiol, e alguns dos dados disponíveis levantam sérias preocupações sobre possíveis danos dessa substância. Ademais, é importante ressaltar que não existe qualquer comprovação científica que respalde o uso terapêutico de outros compostos da cannabis, como o delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC). Também não há evidência científica que respalde o uso terapêutico de óleos de cannabis.

Além disso, é muito importante que qualquer eventual uso terapêutico de um componente da cannabis seja avaliado e testado rigorosamente por meio de métodos científicos apropriados. Não é mais possível que essa situação seja explorada de maneira ideológica por grupos que querem liberar a cannabis no Brasil. Não se pode também aceitar que a sociedade brasileira seja enganada por grupos de interesse que querem explorar um eventual mercado da cannabis no país. É inaceitável que o uso terapêutico, restrito de apenas uma única molécula da cannabis, seja usado como ponta de lança para a liberação dessa droga no país. É muito importante que a toda a sociedade brasileira seja devidamente esclarecida sobre essa questão.

Quanto aos efeitos deletérios relacionados ao uso recreativo da cannabis, vale frisar que dirigir sob efeito de maconha aproximadamente dobra o risco de acidente de carro, e que cerca de um em cada 10 usuários regulares de cannabis desenvolve dependência. O uso regular de maconha na adolescência, aproximadamente, dobra os riscos de abandono escolar precoce, de comprometimento cognitivo e psicoses na idade adulta. O uso de cannabis também é fator de risco para episódios de mania e ocorrência de suicídio. O uso regular de cannabis na adolescência também está fortemente associado ao uso de outras drogas ilícitas. O uso de cannabis pode produzir dependência, existindo associação consistente entre o uso regular da droga e maus resultados psicossociais e de saúde mental na vida adulta. Assim sendo, não há justificava para a retirada da Lista IV da Convenção Internacional de 1961 da cannabis, conforme recomenda a OMS, pois tal droga causa dependência e produz graves efeitos nocivos a seus usuários, famílias e toda a sociedade. Quanto ao uso terapêutico, as evidências científicas também não dão sustentação para a retirada da cannabis da Lista IV. Além disso, vale ressaltar que uma possível aprovação das recomendações da OMS pela Comissão de Narcóticos da ONU favorecerá o aumento da produção, comércio, armazenamento, posse e uso da cannabis em todo o mundo, com a diminuição da fiscalização sobre tais atividades. Tal situação contribuirá também para a diminuição da percepção de risco da população sobre os graves malefícios que a cannabis causa a seus usuários, suas famílias e todo o conjunto social, afetando principalmente as camadas mais vulneráveis das sociedades. Esse cenário aumentará, sem dúvida alguma, os graves problemas relacionados às drogas, que já vêm assolando a comunidade internacional nos últimos tempos. Vale ainda ressaltar que órgão da própria ONU, a Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes, coloca claramente sua preocupação quanto às consequências do pretenso uso medicinal da cannabis e substâncias relacionadas. Diante disso, fica claro, inclusive, que não há consenso entre os órgãos que compõem a própria ONU sobre o uso terapêutico da cannabis e seus impactos nos diversos países ao redor do mundo. Diante do exposto acima, o Brasil é contra a aprovação das recomendações da OMS pela Comissão de Narcóticos da ONU, que preveem a redução do controle internacional sobre a cannabis e substâncias relacionadas.

Quirino Cordeiro, secretário nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania e membro do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas

NOTA TÉCNICA Nº 14/2020 – Recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio do Comitê de Especialistas em Dependência de Drogas (ECDD), sobre a revisão do status da cannabis e substâncias relacionadas nas Convenções Internacionais de Controle de Substâncias Psicotrópicas da ONU


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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