Debate: descriminalizar as drogas ajuda no combate à criminalidade?

29 de março de 201713min1
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OAB SP

(imagem reprodução)

 SIM

Há quase 50 anos, mais precisamente em 1971, o então presidente norte-americano Richard Nixon anunciava que “o inimigo público número um dos EUA é o abuso das drogas” – momento histórico conhecido como o início da guerra às drogas. Meio século de um processo marcado pelos seguintes pilares: política de encarceramento em massa da população pobre e negra daquele país (que catapultou os Estados Unidos à liderança isolada do vergonhoso ranking de maior população carcerária do mundo); militarização das instituições e políticas públicas, calcadas na ideologia de guerra contra o inimigo (o traficante); e violência desproporcional e ilegal contra grupos mais vulneráveis.

Hoje, no mesmo país, um novo processo histórico marcha a pleno vapor. Metade dos estados já regulamentaram a produção, comércio e consumo da maconha medicinal e em quatro estados a maconha para uso recreativo já é permitida. Também em países tão diversos como Portugal, Holanda, Finlândia, Espanha, Argentina, Colômbia e Uruguai, políticas de droga caminham em menor ou maior grau em direção oposta ao chamado proibicionismo.

A causa principal que fundamenta esses novos olhares ao tema é uma só: esses países constataram que a guerra às drogas fracassou. Simples assim.

Além disso, o proibicionismo é um dos principais incentivadores da formação de organizações criminosas armadas, já que a violência é o modo principal de regulação dos mercados ilegais. Como consequência, o tráfico de entorpecentes está necessariamente acompanhado pelo tráfico de armas, por disputas por territórios, corrupção e solapamento das instituições democráticas, especialmente das polícias, da justiça e das instituições de governo.

Por esses motivos é fundamental que o Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário nº 634.659 decida pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei Federal 11.343 de 2006), descriminalizando o porte para uso. Calcadas em pesquisas sobre o impacto da criminalização na justiça criminal, a Conectas Direitos Humanos e parceiros foram admitidos como amicus curiae no caso e levaram à Corte dados empíricos sobre o tema. Da síntese de pesquisas analisadas pelas entidades, é possível enumerar constatações e conclusões bastante importantes com relação à criminalização do porte de entorpecentes para uso pessoal no Brasil: 1) A distinção entre os crimes de porte para uso (artigo 28) e porte para tráfico (artigo 33) é extremamente frágil e insuficiente, gerando ampla margem de discricionariedade e arbítrio à autoridade policial responsável pela abordagem; 2) A grande maioria dos casos que envolvem porte de entorpecentes deriva de prisão em flagrante, ou seja, não há um trabalho de investigação por parte da polícia para combater os esquemas de tráfico de drogas; 3) Há um perfil bem nítido de pessoas selecionadas nesses casos: jovens, pobres, negros e, em regra, primários; 4) A maior parte das pessoas detidas por envolvimento com entorpecentes estava sozinha na hora do flagrante; 5) São ínfimos os casos em que a pessoa presa por envolvimento com entorpecentes portava arma; 6) Na maior parte dos casos, a pessoa acusada portava pequena quantidade de entorpecentes; 7) Em regra, a única testemunha do caso é o policial que efetivou a prisão, cuja palavra é supervalorizada pelo Judiciário por possuir fé pública; 8) Apesar do acréscimo repressivo ao tráfico de drogas imposto pela Lei nº 11.343/2006, de lá para cá, comércio e consumo de entorpecentes seguem cada vez mais ascendentes.

Os resultados da política proibicionista são, como se vê, catastróficos. Não obstante, atualmente é perceptível a abertura internacional para a adoção de políticas de descriminalização do consumo de entorpecentes – como o que acontece nos Estados Unidos e em vizinhos latinos e países europeus –, um primeiro passo para a reforma de uma política falida e cruel.

O Brasil foi um dos últimos países do Ocidente a abolir a escravidão, uma cicatriz em sua história até hoje não curada. Esperamos que nosso país não seja também o último a pôr fim a uma guerra que só tem gerado mais violência e sofrimento, especialmente aos jovens, negros e pobres de hoje.

Rafael Custódio – Advogado, coordenador do Programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos

 

NÃO

Semeio, cultivo e porte para uso e uso de entorpecentes não constituem crime no Brasil. A política criminal orientadora da Lei de Drogas e as medidas ali previstas (art. 28 e seguintes) são de natureza assistencial e terapêutica. Se o adicto ou usuário não as cumpre, o Estado renuncia à intervenção e os deixa definir o destino, escrever a triste história, a biografia da dependência. Não se cogita de prisão, resposta característica e definidora do Direito Penal. O mais é abuso dos agentes estatais.

A descriminalização do tráfico, lembrada na crise penitenciária, é medida política perigosa ao sistema punitivo. No limite, propõe que à incidência de delito de largo contingente de prisão (homicídio, roubo, furto, receptação, e agora a corrupção etc) haja descriminalização ou medidas jurídicas não coercitivas, frouxas, para não saturar o sistema! Extinga-se o Código Penal e a criminalidade radicalmente diminuirá!

Até mesmo a revogação da Lei de Drogas, porém, não equaciona o cárcere. Mais de 564.000 mandados de prisão estão por cumprir, enquanto a prisão processual ou penal nela fundada significa 28% do sistema (200.000), a permanecer o insolúvel residual de 364.000 candidatos!

Não convence o argumento das “drogas lícitas” (álcool e tabaco), das quais se aufere tributo. Claro, produzem grave problema de saúde pública, mas não geram o potencial criminógeno ínsito às drogas proibidas.

Na política de drogas, o Brasil observa as recomendações da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, 1988; United Nations General Assembly Special Session on Drugs -1998. Não é obediência servil à política norte-americana, mas acato a orientação da comunidade das Nações Unidas para o cuidado desse grave problema.

Argentina, Colômbia, Portugal recentemente descriminalizaram o porte para o uso, punido com prisão, mas não cogitaram do tráfico. Consultem-se a legislação e as decisões das Cortes Superiores.

Holanda, Suíça, Dinamarca, simpáticas à política de tolerância, nunca descriminalizaram o tráfico. Agora, iniciaram a volta (Dirk Korf), estabelecendo restrições jurídicas ao comércio tolerado de drogas leves (por exemplo aos estrangeiros), pois escancarou porta ao crime organizado.

É ingênuo pensar que a descriminalização do tráfico resolverá a criminalidade e a lotação da prisões, ao atribuir ao Estado a produção e distribuição de entorpecentes. Evidentemente surgirá o comércio lateral, sofisticado e organizado, como nos jogos de azar (bingo, roleta, caça níquel, bicho etc.). A criminalidade mudará de forma, a exigir novos modelos penais incriminadores.

Justificável a interferência estatal na esfera privada. É dever constitucional a assistência e promoção da dignidade humana, perdida na drogadição, até o limite da autonomia da vontade. Isto é, quem experimentou a intervenção em razão de entorpecentes, mas preferiu a autodestruição, desconstruirá livremente seu destino. Anulada tal autonomia (patologias mentais), renova-se o poder de intervenção, de cunho médico-assistencial.

O problema da criminalidade e crise do sistema penitenciário não está na punição do grande ou pequeno traficante, mas na ideologia do encarceramento definida pelo Ministério Público e cumprida pelo Judiciário. Note-se: de 2000 a 2014 o sistema prisional triplicou, mas o déficit de vagas dobrou, com uma das maiores taxas de ocupação do sistema do mundo (perto de 170%). E houve significativo aumento na violência!

Esse personagem central, inexplicavelmente opaco na crise penitenciária, promove a cultura do encarceramento como resposta única ao delito, a exemplo das “dez medidas contra a corrupção”. Ordinariamente requer a prisão cautelar (presos provisórios no país são 40%, mas 20% na Alemanha e EUA, e 27% na França), mesmo a drogadictos e usuários; opina contra o relaxamento da prisão em flagrante e postula regime fechado a toda condenação no âmbito ou não da Lei de Drogas, se permitido o semiaberto ou aberto ou restritivas de direito. Frustrado, recorre, pois a solução ética e jurídica a todo delito por suposto é a prisão, com suas “amenidades e virtudes”!

Progressão de regime e livramento condicional recebem ferrenha oposição. Não é bastante prender, mas urgente manter no cárcere. Aos curiosos, proponho visita à Vara de Execuções e consulta ao respectivo processo-crime. Aos estudiosos, estimulo a pesquisa qualitativa e quantitativa do fenômeno.

 David Teixeira de Azevedo – Advogado, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP

 
 
 

Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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