14 de outubro de 2024

“Aumento da repressão ao tráfico de drogas reduziria número de presos”

4 de março de 201756min13
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Consultor Jurídico

COMBATE INTENSIFICADO

Por Sérgio Rodas

Com relação às drogas, o Brasil está em cima do muro: não sabe se opta por endurecer a repressão ao tráfico ou se decide aplicar mais penas alternativas e, eventualmente, legalizar os entorpecentes. Para o procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo Márcio Sérgio Christino, o país deveria seguir o primeiro caminho. Assim, conseguiria reduzir os efeitos nocivos que os traficantes causam à população sem ter os danos sociais que viriam com a liberação da maconha, da cocaína e do crack.

 

Uma forma de melhorar a repressão, segundo ele, seria alterar as regras de progressão de regime. A seu ver, criminosos perigosos, muitas vezes, ficam pouco tempo na prisão. Assim, defende que, para progredir, haja um critério objetivo e a avaliação de uma junta de especialistas, que definiriam se o detento tem condições de voltar para o convívio social.

O procurador de Justiça também diz ser favorável à ampliação do regime disciplinar diferenciado (RDD). Hoje, essa medida não pode ultrapassar 360 dias. Na visão de Christino, esse prazo é insuficiente para desarticular organizações criminosas. Ele avalia que o isolamento prolongado dessas pessoas não dificultaria a ressocialização delas.

“Se esse preso tem um grau de periculosidade tão grande, ele vai precisar de mais tempo mesmo para poder se reintegrar, se é que ele vai se reintegrar à sociedade. Temos que reconhecer que não há garantia nenhuma de que um criminoso desse tipo vá ser reintegrado. Isso não existe, não é possível garantir que qualquer preso possa ser recuperado através da ação x ou da ação y. Claro que essa oportunidade tem que ser dada, mas ela tem que variar de acordo com a periculosidade da força criminosa que esse indivíduo tem. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Há momentos em que o remédio amargo é que pode curar a doença.”

Márcio Christino participou das primeiras investigações sobre o Primeiro Comando da Capital (PCC). Com base nessa experiência, diz que a organização só cresceu tanto porque o Estado não controlou os presídios nem reprimiu corretamente o tráfico.

Radicalmente contra a legalização das drogas, o integrante do MP-SP aponta que “essa não é a melhor saída para nenhuma sociedade”. “Nem o álcool nem o tabaco têm essa capacidade de vício da cocaína, do crack, e da maconha também. Teria que gastar muito em tratamento, e nem sabemos se esse tratamento seria eficiente, porque o tratamento dos viciados não tem um retorno muito grande”, declara, ressaltando que a regulamentação dos entorpecentes também aumentaria o número de crimes violentos.

Embora os condenados por tráfico de drogas componham 28% da população carcerária brasileira, Christino alega que uma intensificação da repressão ao tráfico. Na realidade, reduziria o número desses presos. “Quando há uma repressão eficiente, não tem mais essa quantidade de pessoas vendendo drogas.”

Além disso, o procurador de Justiça não vê problemas no dado de que 74% das prisões em flagrante por tráfico só têm testemunhas policiais. “Por acaso alguém acha que é comum ou viável procurar uma testemunha que deponha contra o traficante? O viciado se disporia a depor contra o próprio traficante que fornece a droga para ele? É uma dificuldade absurda levar outras testemunhas para depor”, alega, ressaltando que o acusado terá ampla oportunidade de se defender no processo.

Em entrevista à ConJur concedida na sede do MP-SP, Márcio Christino ainda explicou as causas do sucesso do PCC, avaliou a influência dessa organização na redução da violência em São Paulo e defendeu a adoção de institutos do Direito norte-americano no Brasil.

Leia a entrevista:

ConJur — Como o senhor se especializou no PCC?
Márcio Christino
  Não é que eu me especializei no PCC. Eu estava no lugar certo, na hora provavelmente errada. Era um momento onde o PCC ainda não tinha ganhado essa amplitude, foi antes da megarrebelião. Eu trabalhava investigando abuso de autoridade, crimes praticados contra presidiários, espancamento por policiais, torturas. Quando ouvia os presos, eles faziam referência ao “partido”. Comecei a perceber que existia alguma coisa ali. Nesses casos, o preso era a vítima, não réu, então ele tinha uma tendência a se abrir mais para nós [do MP]. Com essa informação, avisei o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) e comentei o caso com o Roberto Porto, que era meu colega na época. Eu continuei acompanhando as investigações até que veio a megarrebelião de 2001. Quando isso ocorreu, o impacto político-social deles cresceu muito. Daquele momento em diante, o PCC passou a ser notoriamente reconhecido. A partir dali, os trabalhos foram intensificados. Como eu já tinha esse contato com os presos, foi natural que eu também participasse dessa apuração. Meses depois da primeira operação, fui designado para compor o Gaeco e comecei a me concentrar nessas investigações.

 

ConJur — Como estão essas investigações hoje em dia?
Márcio Christino
  Já estamos em uma segunda geração de investigadores. Temos promotores excelentes, que estão produzindo operações como a ethos [que prendeu advogados suspeitos de envolvimento com o PCC]. Nesses 16 anos, surgiu a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), que modificou as formas de investigação.

 

ConJur — Algum ex-integrante do PCC já firmou acordo de delação premiada?
Márcio Christino
  Sim. Um dos fundadores do PCC, o José Márcio Felício, vulgo Geleia, Geleião, Cavalo Branco, fez delação premiada em uma época em que esse instrumento estava previsto na Lei de Proteção a Testemunhas (Lei 9.807/1999). Eram formatos ainda primários, não tinha o contorno que tem hoje, mas já naquela época ele fez delação premiada. Inclusive foi ele que trouxe a prova direta da participação do Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, no esquema, o que levou à condenação dele e de outros líderes que à época comandavam o Primeiro Comando da Capital. Foi a primeira condenação específica por chefiar organização criminosa, em um processo que só tinha esse objeto, e acabou dando certo. Também houve alguns personagens menores que fizeram delação premiada.

 

ConJur — Houve alguma delação premiada nos moldes da Lei de Organizações Criminosas?
Márcio Christino
  Se houve, eu desconheço. Mas, cedo ou tarde, isso acontecerá. Estamos vendo o efeito das delações premiada nas grandes operações. E o mecanismo está começando a se espalhar, deixando de ser um mistério. Assim, os envolvidos começam a ter ideia de que isso pode acontecer.

 

ConJur — Como o PCC se difere de outras facções criminosas, como Comando Vermelho, Terceiro Comando da Capital ou Amigos dos Amigos?
Márcio Christino
  Essas facções têm uma história diferente. O Comando Vermelho surgiu muito antes, na prisão de Ilha Grande (RJ), fruto da ligação entre presos políticos e presidiários comuns. Já o PCC surgiu de um grupo de indivíduos que queriam criar o que seria, para os norte-americanos, um sindicato do crime. Ou seja, uma aliança entre os grandes líderes de quadrilhas de criminosos que tinham uma ascendência muito grande. Esse é o elemento comum que havia. Eles tinham uma ascendência muito grande sobre a massa carcerária, então criaram essa liderança com o intuito de comandar de dentro dos presídios as ações fora, e também de dominar os presídios impondo a força deles sobre o Estado. Isso aconteceu antes de 1993, mas foi nesse ano que eles formalizaram a existência do grupo com uma rebelião — na verdade, com dois homicídios, que foram praticados em 31 de agosto de 1993 na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté. Eles eram sete, e tiveram essa ideia de fazer um avanço inicial. A partir de lá, foram crescendo. Mas o PCC é fruto dessa ideia de dominação externa. Ou seja, o PCC surgiu de forma completamente diferente do Comando Vermelho. As facções que vieram depois são espelhos do que o PCC fez, porque como a organização foi considerada “bem-sucedida”, passou a criar espelhos, e esses espelhos são facções ou microfacções, que ou são rivais aqui em São Paulo ou buscam reproduzir uma experiência que eles acham exitosa em outros estados. Em São Paulo, o PCC domina mais de 90% do tráfico de drogas. O PCC se espalhou de Taubaté para São Paulo, depois para o estado inteiro, depois Paraná, Mato Grosso, depois o Nordeste, Sul, e hoje se associaram a produtores de cocaína da Bolívia, transportando a droga também com uma base no Paraguai. De certa forma, o PCC se tornou um cartel internacional.

 

ConJur — Mas realmente há células do PCC em outros países?
Márcio Christino
  Não sei se é possível conceituar isso como uma célula, mas o PCC mantém focos no Paraguai e na Bolívia, sem dúvida. Aliás, no Paraguai, o diálogo deles é supostamente travado com um traficante famoso, o Jarvis Pavão, que teria mandado matar o presidente do Paraguai, Horacio Cartes. E ele que manteria toda essa estrutura.

 

ConJur — Por que o PCC conseguiu se expandir tanto?
Márcio Christino
  O PCC se expandiu seguindo as rotas do tráfico. Quando ele vai em direção ao Paraguai, Mato Grosso, Paraná, ele está seguindo as rotas do tráfico. Isso também foi fruto da transferência de alguns presos para essas regiões, principalmente as lideranças, como o Cesinha, o José Márcio. Quando eles saíram, passaram a repetir o modelo de organização do PCC em outros estados. Fora isso, havia um vácuo, porque não tinha crime organizado com essa proporção nem com esse tipo de estrutura, com essa divisão, essa amplitude. Eles foram ocupando um espaço onde não havia opositores. E cresceram tanto está em conflito com a Família do Norte, mas no começo este grupo era um braço do PCC, que havia se organizado à semelhança do próprio PCC. E não havia resistência a essa expansão. Como o Estado não tinha tomado consciência desse movimento, naquele primeiro momento não conseguiu opor um obstáculo a essa expansão.

 

ConJur — Alguns pesquisadores afirmam que a estrutura corporativa do PCC seria outro fator que contribui para o seu sucesso. Segundo eles, a facção funciona como se fosse uma empresa. O que o senhor pensa dessa avaliação?
Márcio Christino
  Eu não sei se a estrutura do PCC é semelhante à de uma empresa, mas, de fato, eles têm organização. Por organização entenda-se divisão em órgãos, com atividades específicas, hierarquia, divisão de funções. A facção tem tabelas de preços, organiza a distribuição, monta uma estrutura para isso. Então o PCC tem uma atividade empresarial, e isso faz com que eles tenham lucro. Por isso, eles deixaram de ser uma quadrilha que executa uma determinada ação e divide o dinheiro, cada um fica com uma parte. Eles passaram a ter um corpo, e esse corpo é que fez o sucesso deles.

 

ConJur — Os presídios federais, de segurança máxima, falharam em desarticular as facções criminosas?
Márcio Christino
  Quando eles foram construídos, as facções já estavam bem evoluídas. Talvez eles tenham chegado tarde demais. Os presídios federais são bons instrumentos, mas isso não basta para desarticular as facções. É preciso ter outras ações, como uma mudança legislativa para criar condições de isolamento dos líderes das facções criminosas. O isolamento dos líderes no Brasil não é eficiente, porque a lei não permite. Isso precisa ser eficiente como nos EUA. Al Capone, por exemplo, foi transferido para a prisão de Alcatraz [em São Francisco], e a organização dele feneceu. Ou mesmo como na Itália. Depois do homicídio do juiz [que comandou a operação mãos limpas] Giovanni Falcone, o mafioso que o matou foi isolado, e nunca mais conseguiu influenciar sua organização. No Brasil, porém, o líder continua organizando e liderando a facção criminosa enquanto está preso. No regime de pena que temos, a contenção do regime fechado não é suficiente. Nem mesmo o regime disciplinar diferenciado. O RDD não é regime de cumprimento de pena, ele é pontual, uma medida que pode ser aplicada de 6 meses a 2 anos, geralmente de 6 meses a 1 ano. Isso não é suficiente.

 

ConJur — O RDD deveria poder ser decretado por um período indeterminado?
Márcio Christino
  Não digo indeterminado, o RDD deveria entrar em alguns casos em que uma parte da pena tivesse que ser cumprida em regime fechado. Se o sujeito foi condenado a 20 anos de prisão, teria que ficar 4, 5, 6 anos em RDD. O regime fechado tem que ser suficiente para retê-lo. Não que isso deva ser aplicado a qualquer crime, seria para aqueles em que se reconheça um líder criminoso ou uma periculosidade excessiva. Nós necessitamos de um regime de cumprimento de pena mais rigoroso para neutralizar essas lideranças e pessoas com esse grau de periculosidade.

 

ConJur — Mas deixar essas pessoas mais tempo isoladas não compromete ainda mais a possibilidade de elas voltarem a se reintegrar à sociedade?
Márcio Christino
  Olha, se esse preso tem um grau de periculosidade tão grande, ele vai precisar de mais tempo mesmo para poder se reintegrar, se é que ele vai se reintegrar à sociedade. Temos que reconhecer que não há garantia nenhuma de que um criminoso desse tipo vá ser reintegrado. Isso não existe, não é possível garantir que qualquer preso possa ser recuperado através da ação x ou da ação y. Claro que essa oportunidade tem que ser dada, mas ela tem que variar de acordo com a periculosidade da força criminosa que esse indivíduo tem. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Há momentos em que o remédio amargo é que pode curar a doença.

 

ConJur — Que outras alterações legislativas poderiam ser feitas para reduzir o poder das facções criminosas?
Márcio Christino
  Penso numa legislação semelhante à americana do plea bargain, onde há possibilidade de negociação, que não é propriamente delação premiada. Por exemplo, em uma ação penal eles não denunciam necessariamente todas as pessoas, mas os principais suspeitos, dentro do conceito de crime organizado. Quanto aos de nível hierárquico inferior, eles usam medidas penais mais leves, permitindo que a investigação se concentre em determinadas lideranças. Outra coisa: da maneira como é feita hoje, a execução penal da maneira está falida. Não existe possibilidade de aplicação da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) da maneira como ela foi concebida. Essa estrutura que foi prevista na lei não corresponde à nossa realidade. A lei tem que ser adequada à nossa realidade, para que pudesse atingir o sistema prisional e fazer com que a pena fosse cumprida de maneira mais justa e eficiente. Juntando esses fatores, pode-se chegar a um resultado positivo. Não acredito que isso vá acabar com o crime ou com as facções, mas vai reduzir a capacidade de atuação delas de uma maneira muito eficiente.

 

ConJur — O senhor poderia dar alguns exemplos de como a Lei de Execução Penal poderia ser modificada?
Márcio Christino
  Da maneira que ocorre hoje, a progressão de regime é uma fantasia. Em um primeiro momento, o condenado fica em regime fechado. Depois, ele progride para o regime semiaberto. Mas como não há vagas nos estabelecimentos adequados, ele passa imediatamente para o regime aberto. Ou seja, o condenado acaba cumprindo uma quantidade ínfima da pena em relação ao total. Se o sujeito foi condenado a 12 anos, acaba cumprindo dois. Seria preciso mudar isso, talvez com uma alteração nesses parâmetros de tempo, talvez com limitação quanto aos regimes, sem seccioná-los tanto. E exigir mais exames criminológicos para essas progressões.

 

ConJur — O senhor pensa que o combate ao crime organizado tem ajudado a diminuir o poder desses grupos e reduzir a criminalidade?
Márcio Christino
  Temos tidos ações muito eficientes, que alcançaram seus objetivos. Elas podem não acabar com o PCC, mas retardaram o crescimento dessa facção. O Estado deveria se impor mais? Sim, deveria, deveria reconquistar o espaço dentro dos presídios. Mas repito: para isso, é preciso ter ajustes legislativo, administrativo e de gestão em torno da questão prisional.

 

ConJur — Alguns pesquisadores, como Graham Williams, da Universidade de Cambridge, Bruno Paes Manso, da Universidade de São Paulo, e João Manoel Pinho de Mello, do Insper, afirmam que a redução da taxa de homicídios em São Paulo — que caiu de 52,58 assassinatos por 100 mil habitantes em 1999 para 8,73 em 2016 — não ocorreu por um aumento de eficácia do combate ao crime e de melhores políticas públicas, mas porque o PCC dominou todas as favelas, acabando com os conflitos nessas áreas. O que o senhor pensa dessa avaliação?
Márcio Christino
  Eu concordo com eles. Ninguém pode determinar até que ponto isso ocorreu por influência de um ou outro fator, porque para saber seria preciso catalogar todas as ações do PCC — algo impossível de se fazer. Mas um dos reflexos do domínio de uma organização criminosa sobre um determinado lugar é o seu predomínio sobre tudo o que acontece ali. O crime organizado não aceita concorrência, não aceita que os seus negócios sejam perturbados. Então eles dominam o espaço e, lá, não permitem que nada ocorra para não ferir os seus próprios interesses comerciais. É evidente que eles não vão permitir que sejam praticados roubos ali, que sejam cometidos homicídios. Outro ponto é que as facções criminosas têm um aspecto semelhante a organizações militares. Não é que eles estejam atuando em brigadas, é como se fosse uma ocupação militar, como se tivessem invadido um espaço, e, a partir daquele momento, eles controlam o ambiente em todos os sentidos — não permitem que se faça a, b ou c lá. Essa ocupação do PCC, de certa forma, afeta os índices de criminalidade.

 

ConJur — Estima-se que o PCC fature R$ 240 milhões por ano. Desse total, avalia-se que 80% venha da venda de drogas. A guerra às drogas é responsável pelo crescimento de facções criminosas como o PCC?
Márcio Christino
  Primeiro que ninguém sabe a real extensão de quanto eles faturam: pode ser R$ 240 milhões mesmo, pode ser mais. Agora, o PCC, quando nasceu, não era só baseado no tráfico. A especialização do tráfico veio depois, quando a organização já estava estruturada em torno do Marcos Willians Herbas Camacho. O PCC se concentrou no tráfico de drogas porque ele é um crime que permite um rendimento permanente. Não é como o roubo, não dá para praticar um roubo todo dia. Mas é possível vender droga todos os dias. Aí, a organização conta com a aquiescência da suposta vítima, que é o viciado, não tem confronto. Há uma série de fatores que fazem com que o tráfico seja um crime mais eficiente. Eles entram na guerra às drogas? Sim. Agora, a guerra às drogas está ligada ao crescimento do PCC? Não. O tráfico tem que ser combatido, seja como for. A guerra às drogas favoreceu o PCC? Se o combate às drogas fosse mais eficiente, teria acabado com o PCC, porque impediria que ele se espalhasse. Talvez precisássemos rever a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), não para evitar combate ao tráfico, mas que ele seja mais eficiente, mais duro em relação a traficantes. Nós temos as menores penas para tráfico no mundo. O Brasil é um país atrativo para quem quer traficar, é um paraíso. Com a redução da pena, que é praticamente obrigatória, o sujeito acaba sendo condenado a 1 ano e 8 meses de prestação de serviços à comunidade. Na prática, a pena acaba não sendo cumprida.

 

ConJur — A regulamentação das drogas não seria uma forma de reduzir a força do PCC?
Márcio Christino  Não, porque, para reduzir a força do PCC, seria preciso liberar todas as drogas, especialmente a cocaína e o crack, que é onde eles estão mais focados. Se liberarmos o consumo, também temos que liberar a venda. Caso contrário, o comércio de drogas continuaria na mão das facções. Mas vamos fazer isso com o crack, com todos os efeitos nocivos que ele tem? Vamos fazer isso com a cocaína, com todos os efeitos nocivos que ela tem? Nós não temos estrutura nenhuma para absorver as consequências que o alastramento do tráfico causaria. Nós não temos estrutura de saúde sequer para atender às pessoas com doenças graves, vamos ter para absorver todos os viciados? Veja o exemplo da cracolândia. Como o Brasil vai lidar com esses guetos de consumidores de drogas? Nós temos condições para isso? Eu não acho que temos condição para isso, ainda mais com as restrições econômicas que nós temos. Essa é uma via que, se for escolhida, vai trazer um resultado extremamente desfavorável para a sociedade.

 

ConJur — É legítimo o Estado proibir que uma pessoa use uma substância que, em última instância, só irá prejudicar a ela mesma?
Márcio Christino
  Esse é um conceito que já está fora de moda. Quem usa uma substância tóxica dessas não afeta apenas a si mesmo, mas também o entorno social que está à volta dele. Além de atingir o núcleo familiar, essa pessoa coloca em perigo as suas relações sociais. Se uma pessoa usa cocaína, ela perde o sentido da realidade, perde até o domínio sobre a sua própria vontade. Ela se sujeita a realizar qualquer tipo de ato para satisfazer o seu vício. Essa pessoa é agressiva, perde o sentido de obediência ao sistema legal e ao sistema social, ao convívio social. Então, essa pessoa não afeta só ela própria. Antigamente, os índios americanos se isolavam em uma montanha, fumavam, ficavam lá, depois voltavam para a aldeia, e faziam isso como uma experiência mística ou religiosa, completamente isolados. Isso não ocorre hoje em dia. O indivíduo prejudica todos que estão à sua volta, e não somente a si mesmo. Esse conceito de que “eu só me prejudico” já está vencido. Além disso, quem usa droga se coloca numa situação de necessidade de ser atendido, ocupa um espaço que, teoricamente, deveria ser preenchido por uma pessoa que não se expôs a esse risco.

 

ConJur — A guerra às drogas não reduziu o consumo de entorpecentes no mundo. Não seria melhor regulamentá-las de alguma forma e mudar o foco para o atendimento médico dos usuários do que ficar fortalecendo facções que comercializam entorpecentes? Os danos sociais não seriam menores?
Márcio Christino
  Esse raciocínio é frágil. Você diz que o crime continua sendo praticado independentemente da repressão. Ora, homicídio é praticado desde a época bíblica, e nem por isso você vai deixar de reprimi-lo. Assim como o roubo, ou furto, ou qualquer outro tipo de crime. Se está aumentando o consumo de drogas ou não, isso depende de você fazer uma medida que deve levar em conta o aumento populacional. Em certos países aumenta, em outros diminui, é a lei da oferta e da procura. Essa é uma opção política, mas esses argumentos são frágeis. Mesmo porque é preciso supor que qualquer alternativa ao combate ao tráfico deveria necessariamente envolver o fornecimento de drogas a quem assim o desejar. Então, vamos permitir a disseminação da cocaína, do crack, do LSD e outras drogas? Qual é o benefício disso para a sociedade? “Ah, não vai armar as facções”. Mas a que preço? Quem vai arcar com os danos que isso vai causar à saúde pública? Você vai ter situações extremas, como a Cracolândia. Eu recebi uma pergunta muito interessante esses dias: “Você seria a favor da legalização das drogas se você tivesse um filho morando na Cracolândia?”. Essa é uma situação completamente diferente. É uma situação em que o indivíduo chega a perder a sua humanidade. Então, permitir e incentivar o livre consumo de substâncias não é a melhor das saídas. Isso atenderia aos interesses daqueles que lucrariam com esse mercado. Calcule quantos laboratórios ficariam felizes com isso. Eles obteriam lucros altíssimos vendendo substâncias dessa natureza, com o número de viciados crescendo constantemente. Não vejo isso como a melhor saída para nenhuma sociedade.

 

ConJur — A seu ver, a legalização das drogas faria explodir o número de usuários, causando uma espécie de epidemia social?
Márcio Christino
  Poderia ensejar isso, ou pelo menos, uma doença social extremamente severa, com consequências muito graves para a sociedade, e, principalmente, para aqueles que não são usuários de drogas principalmente. Existem alguns argumentos no sentido de que, se a droga for legalizada, irá diminuir o consumo. Se você for verificar o potencial viciante da cocaína e do crack, verá que essa alternativa é inviável. Isso porque a força que essas drogas têm de causar dependência fará com que o consumo cresça. É inviável admitir que o fornecimento de uma substância que, em pouco tempo de uso, faça com que a pessoa seja escravizada pelo seu uso não vá acarretar o crescimento do consumo.

 

ConJur — Mas com a regulamentação, os recursos atualmente investidos na repressão ao tráfico de drogas poderiam ser usados no tratamento dos usuários e na prevenção ao uso, como é feito com o cigarro e com o álcool. Isso não evitaria ajudaria a diminuir o consumo?
Márcio Christino
  Pode até ser, mas também não é eficiente. Nem o álcool nem o tabaco têm essa capacidade de vício da cocaína, do crack, e da maconha também. Teria que gastar muito em tratamento, e nem sabemos se esse tratamento seria eficiente, porque o tratamento dos viciados, dos drogaditados, como se fala, não tem um retorno muito grande. É muito difícil de fazer, é longo, difícil e sem nenhuma garantia de resultado. Com isso, estaríamos jogando com uma possibilidade de benefícios que está muito abaixo das consequências negativas que ocorreriam simplesmente pela disseminação do uso. Seria melhor ter uma repressão eficiente ao tráfico do que simplesmente permitir que o tráfico se realizasse livremente.

 

ConJur — Outro argumento usado pelos opositores da legalização é o de que, sem o tráfico, os traficantes passariam a cometer crimes mais violentos, como roubo e sequestro. O que o senhor pensa desse argumento?
Márcio Christino
  Bom, eles têm lucro, e vão querer manter esse lucro acima de tudo. Eles não vão se regenerar simplesmente porque o tráfico passou a ser considerado lícito. Eles vão partir para outra atividade criminosa. Nos vídeos das rebeliões que ocorreram em prisões do Nordeste e do Norte, vê-se que há indivíduos extremamente agressivos, que mutilam corpos. Nada disso é novidade, mas nessa quantidade, sim. Se o tráfico fosse legalizado, essas pessoas seriam libertadas imediatamente. Dá para imaginar que eles vão se regenerar automaticamente? Eu tenho sérias dúvidas de que este raciocínio esteja correto. Penso que eles vão procurar, podem procurar alguma outra atividade ilícita para suprir o que estavam ganhando na traficância.

 

ConJur — A maioria das prisões em flagrante por tráfico de drogas ocorre apenas com base em testemunhos de policiais. Levantamentos da USP e do juiz Luís Carlos Valois apontam que isso ocorre em 74% dos casos. E 91% dos processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. É legítimo prender ou condenar alguém apenas com base em testemunhos de policiais? Ou isso viola o contraditório e a ampla defesa?
Márcio Christino
  Absolutamente não viola o contraditório e a ampla defesa. A defesa participa do processo, irá inquirir os policiais, questionar. Não é só a palavra dos policiais que conta. Tem também a droga apreendida. O que é espantoso dessa afirmação é dizer que, em regra, a condenação é feita apenas com base na palavra de policiais militares. Por acaso alguém acha que é comum ou viável procurar uma testemunha que deponha contra o traficante? As pessoas vão se dispor a testemunhar contra traficante, mesmo sem o Estado lhes proporcionar nenhum tipo de defesa, qualquer tipo de segurança para os dados dela? Mesmo que sejam riscados, os dados estarão visíveis para o advogado de defesa. O policial vai ter que sair na rua procurando pessoas para depor contra um traficante? Você acha que as pessoas iriam de bom grado? Ou que essas apreensões são feitas normalmente em lugares públicos, com grande trânsito de pessoas? Não é assim que o traficante age. Ele sempre age às escondidas, normalmente em locais escuros, em lugares onde ele pode ocultar a droga em algum outro lugar, onde o trânsito de pessoas é muito pequeno. Quando muito, o acesso é feito pelos próprios viciados. O viciado se disporia a depor contra o próprio traficante que fornece a droga para ele? É uma dificuldade absurda levar outras testemunhas para depor. É óbvio que dessas pessoas seria viável se o crime fosse surpreendido na presença de várias pessoas. Essa afirmação teria que ser um pouco mais repensada. Quem diz isso precisa passar mais tempo fazendo pesquisa, presenciando ou participando das audiências, e não basear seu argumento somente em uma amostragem numérica que não revela o conteúdo daquilo que foi feito.

 

ConJur — No tráfico de drogas, não é analisado se há dolo. Com base na quantidade de droga apreendida, policiais definem se o acusado vai ser classificado como usuário ou traficante, sem se preocuparem em verificar a conduta dele. Isso é coerente com o sistema penal brasileiro?
Márcio Christino
  Isso é uma besteira assustadora. Primeira porque o delegado faz uma avaliação preliminar da situação. Não é ele quem decide se aquilo é tráfico ou não. Segundo, aqui em São Paulo, os acusados são submetidos a audiência de custódia. Ou seja, eles são presos, e 24 horas depois estão com um juiz que vai analisar se a prisão deve ser mantida. Ou seja, o acusado de tráfico já passou pelo crivo do delegado, do defensor público, do promotor e do juiz. E outra: não é a quantidade de droga que determina se é uso ou tráfico. O dolo advém das circunstâncias que envolvem a prática do crime. Não existe prova daquilo que a pessoa faz, da intenção dela. A intenção reside na mente de cada pessoa. A intenção se revela através dos atos da pessoa, não do que ela fala. Se eu tenho um papelote de cocaína e estou numa posição onde eu entrego para um viciado qualquer e recebo dinheiro dele como pagamento, isso é um ato de tráfico. A Lei de Drogas prevê circunstâncias para verificar se é tráfico ou não, é o tempo, o local, a quantidade de droga, a postura, e o delegado tem que justificar isso do auto de prisão em flagrante. A apreciação do delegado não é completamente objetiva. É óbvio que não se pode exigir que o traficante confesse que praticou esse crime, mas tem os depoimentos dos policiais militares, a apreensão da droga, a avaliação do advogado, a audiência de custódia. Depois, tem a denúncia, a defesa preliminar, o juiz aceitando a denúncia, a defesa a instrução. Ou seja, é um processo complexo. Então essa ideia de que o sujeito é condenado por objetividade é completamente falsa.

 

ConJur — Muitos afirmam que deixar que o policial decida se a quantidade de droga apreendida configura tráfico ou uso, sem que haja uma tabela fixando as quantias para cada um desses crimes, viola o direito de defesa. O senhor pensa que uma tabela dessas ajudaria a reduzir arbitrariedades?
Márcio Christino
  A quantidade por si só não permite que se conclua automaticamente se é caso de uso ou tráfico. Existe aquilo que chamam de “tráfico formiguinha”. Nele, o traficante fica com dois, três papelotes no bolso, e ele fica perto de onde a droga fica depositada. Aí vem o viciado, ele lhe entrega o papelote e recebe o dinheiro. Se a polícia prender o traficante nesse momento, não vai encontrar 100 quilos de droga com ele. No entanto, ele é traficante porque estava vendendo. Então, só esse critério de quantidade é extremamente perigoso, porque vai permitir a venda dentro desse esquema de quantidade. Iria criar um exército de vendedores.

 

ConJur — Como melhorar o sistema prisional brasileiro, a curto e a longo prazo?
Márcio Christino
  O Estado tem que dominar completamente o sistema prisional, sem dar nenhum espaço para que as facções ajam dentro das unidades.

 

ConJur — O sistema penal brasileiro é muito rígido? Há crimes punidos com prisão que poderiam ter penas alternativas?
Márcio Christino
  Os que poderia ter penas alternativas já têm. Hoje em dia, só não podem ter pena alternativa os crimes cometidos com violência ou grave ameaça, ou os hediondos e os equiparados a hediondos. Mesmo assim, o tráfico privilegiado também tem pena alternativa – e isso constitui 99% dos casos. O Brasil, nesse ponto, está até sendo leniente demais. O Brasil tem que escolher entre reprimir ou não reprimir o tráfico de drogas. Como o Estado quer reprimir, mas ao mesmo tempo não pretende que essa repressão seja muito rígida, acaba fazendo uma legislação que acaba não atendendo nem um foco nem outro. Se for para combater o tráfico, que combata duramente, de forma a impedi-lo. Se não for, que aplique medidas alternativas. Se continuarmos no meio do caminho, nada mudará. Hoje em dia, mesmo sendo reincidente, o sujeito acaba tendo a pena reduzida. De cinco anos, a pena vai para um ano e oito meses.

 

ConJur — A seu ver, o Estado deveria optar por qual desses caminhos: reprimir mais ou adotar medidas alternativas?
Márcio Christino
  Reprimir, fazer uma repressão eficiente. Se for reconhecido o tráfico, o traficante tem que ter uma pena que seja correspondente àquilo que ele faz. Se for para combater as facções, que se combata com um regime de pena severo, com isolamento, penas graves. Nenhum país do mundo liberou as drogas como se pretende fazer aqui. Nenhum. Por outro lado, há países onde a repressão é mais eficiente. Nessa encruzilhada, precisamos saber se nós vamos para a direita ou para a esquerda. Hoje em dia estamos parados no meio do caminho, sem saber para que lado ir.

 

ConJur — Se fosse aumentar essa repressão, teria que instituir penas mais graves para o uso?
Márcio Christino
  Para o uso, não. Só para o tráfico. O uso hoje não tem pena nenhuma, quando muito, o sujeito recebe uma advertência. Agora, precisaria neutralizar o vendedor de drogas, que é o grande ponto fraco do tráfico. Não é a produção, não é a remessa, e também não é o aspecto da lavagem de dinheiro. O ponto fraco é o ponto da venda, porque ali o traficante tem que se revelar, e ele faz isso através de terceiros. Se cortar esse canal de comunicação, o tráfico já dará uma diminuída.

 

ConJur — 28% dos presos brasileiros foram condenados por tráfico de drogas. Aumentar a repressão ao tráfico não poderia aumentar ainda a superlotação do sistema carcerário?
Márcio Christino
  Não, porque não vai aumentar o número de traficantes. Talvez vá diminuir o número de traficantes.

 

ConJur — Mas isso não poderia aumentar o número de presos?
Márcio Christino
  Não necessariamente, porque quando há uma repressão eficiente, não tem mais essa quantidade de pessoas vendendo drogas.

 

ConJur — Então o senhor acredita que aumentar a repressão poderia diminuir o número de presos?
Márcio Christino
  Iria diminuir porque não se iria permitir que esse espaço cresça. O que acontece hoje? O pratica o tráfico, recebe pena de um ano e oito meses, cumpre, e vai fazer o quê? Ele vai traficar de novo, e só será preso depois. Quando ele é neutralizado, não volta para a traficância, ele deixa de ocupar o espaço. A tendência é de que a eficiência da repressão funcione como um elemento inibidor. Vamos supor que haja uma rede de lanchonetes que tem grande movimento. Se diminuir a quantidade de vendas, também diminuirá o número de consumidores. Com isso, diminuirá o número de lojas e de funcionários. É uma lógica comercial, não literalmente penal. Nesse sentido, é possível diminuir o número de traficantes, sim.

 

ConJur — A cada novo crime de grande repercussão ou onda de crimes aparece a mesma sugestão de sempre: aumentar penas. Afinal, aumentar penas reduz a criminalidade?
Márcio Christino
  Em determinados pontos, sim. Se ela for aplicada eficientemente, sim. Não precisa nem aumentar pena, precisa torná-la mais efetiva. A pena serve como elemento inibidor. Se atingirmos esse patamar de inibição, talvez não precisemos aumentar a pena. Aí eu volto àquela observação anterior: esse modo de execução penal não é eficiente para que o sujeito não volte a traficar.

 

ConJur — A seu ver, o requisito básico de cumprir um sexto da pena para progredir de regime é muito baixo?
Márcio Christino
  É muito baixo, é até incompatível com a prática do crime. Se houvesse um exame criminológico, ou, como nos EUA, uma comissão de condicional, a progressão do regime poderia ocorrer com o cumprimento de um sexto da pena, um quarto ou a metade, porque aí haveria uma avaliação do caso concreto, e não apenas um requisito objetivo. Há pessoas para as quais um sexto pode ser eficiente, há outras que têm necessidade de ficar mais tempo encarceradas. Isso seria decidido a partir da pena que foi imposta. No caso do tráfico, a pena inicial tem que ser regime fechado, no mínimo. A partir desse mínimo, o sujeito passaria pela análise de uma comissão, que decidiria se o sujeito tem chance de se recuperar. Se sim, vai para a rua. Se não, fica mais um tempo preso. Mas é preciso ter um patamar mínimo. Dificilmente um traficante vai se recuperar em cinco meses, que é o que ocorre se ele pegar a pena mínima de um ano e oito meses. Esse teria que ser um critério que a lei especificaria com relação ao crime que o sujeito praticou. No caso de tráfico, isso poderia ser fixado de acordo com a quantidade de droga que foi apreendida.

 
 

Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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