O debate da legalização – BLOG Reinaldo Azevedo

12 de fevereiro de 200914min11

UMA DROGA DE DEBATE

A coisa chegou como uma nuvem: “FHC defende a descriminação da maconha”. Dita a coisa assim, não há diferença nenhuma de legalizar. Em entrevista ao Jornal da Globo, o ex-presidente deixou um pouco mais claro o sentido de sua intervenção: “Descriminalizar não quer dizer apoiar, não quer dizer legalizar e dizer ‘pode’. Quer dizer: ‘Se for pego, não vai pra cadeia.’ Porque, se for pra cadeia, vai aumentar a capacidade de se tornar um criminoso permanente, porque as cadeias viraram escola do crime”. Ele se referia, pois, ao consumidor flagrado com a droga. É diferente da onda que tomou conta da Internet? É! Mas não diferente o bastante para eu concordar com ele. Acho que FHC está errado. Absolutamente errado. Vamos às circunstâncias antes que continue.

Três ex-presidentes — além de FHC, César Gaviria (Colômbia) e Ernesto Zedillo (México) — integram uma tal Comissão Latino-Americana para as Drogas e a Democracia. Essa comissão redigiu ontem um documento em que afirma que a política norte-americana de repressão incondicional ao tráfico fracassou. Ela seria responsável pela perpetuação do ciclo de violência na América Latina. A sua recomendação é que os EUA e os países latino-americanos deixem de prender os usuários de drogas e passem a debater o tratamento dos dependentes.

É tanto equívoco, que fica difícil saber por onde começar. Então comecemos pelo Brasil.

Debate atrasado
No Brasil, espero que FHC saiba, esse debate já está até superado. E a razão é simples. O artigo 28 da lei 11.343, de 2006, qualquer que seja a interpretação que se lhe dê, JÁ DESCRIMINOU O PORTE DE DROGA. E QUE SE NOTE: NÃO APENAS DA MACONHA. Logo, nesse particular, essa conversa, para nós, é ociosa e produz mais calor do que luz. Basta que se leia o artigo. Mais ainda: prevê-se também a assistência ao consumidor. Só falta chamá-lo de “dotô” e premiá-lo como uma medalha de honra ao mérito. Não se esqueceu de nada nem de ninguém: até o pequeno produtor foi contemplado. Mais do que isso só seria garantido pela legalização pura e simples. Leiam o artigo (a íntegra da lei está aqui).

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas
II – prestação de serviços à comunidade
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas. § 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I – admoestação verbal
II – multa.
§ 7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

Assim, no que nos diz respeito, a questão já estaria resolvida se o problema estivesse mesmo em descriminar o consumo, que já está descriminado. No Jornal da Globo, falou também o sociólogo Rubem César Fernandes, da tal Associação Viva Rio. Como sempre, os que defendem o laxismo em relação às drogas têm mais perguntas do que respostas. Esperam que a sociedade as dê. A eles caberia apenas sugerir o caminho que lhes parece mais libertário. Ele indaga como um Hamlet do baseado:
“Como separar o mercado das drogas, o consumo, a compra e a venda, do poder dos bandidos? É uma pergunta difícil, mas é a pergunta fundamental pra gente ter um rumo na política de segurança. Tem que separar mercado de poder paralelo”.
Essa separação, se for uma proposta honesta, não passa de uma fantasia estúpida. Ocorre que, lamento dizer, entendo que quem envereda por aí está querendo é legalizar as drogas. Não é possível que alguém acredite que se traga à luz do dia a demanda por droga, sem qualquer interdição, mas reprimindo o tráfico. É UMA IMPOSSIBILIDADE ECONÔMICA. Então por que não propor tudo de uma vez?

Assim, essa conversa de descriminar o uso é só uma etapa da proposta para legalizar as drogas — e, se legais, é claro que a venda estaria liberada. Da noite para o dia, o tráfico desapareceria? Viveríamos no paraíso?

Política americana e lógica torta
A tal comissão resolveu jogar nas costas largas dos americanos responsabilidades que são dos países da América Latina. Afirmar que a política dos EUA fracassou porque o preço da cocaína caiu, e o tráfico continua forte tem lógica apenas aparente. Comecemos pelo óbvio: sem a repressão, o consumo certamente seria maior — como é o de tabaco e álcool, e os problemas de saúde se multiplicariam de modo dramático. Quanto ao crime organizado que comanda as drogas, dizer o quê? Acompanhem o raciocínio que, num primeiro momento, parecerá caminhar contra a minha própria tese.

Se a bebida alcoólica for declarada ilegal, as gangues que hoje cuidam da droga também procurarão traficar álcool, certo? Certo! Aí os simples de espírito então pensam: “Tá vendo, Reinaldo? Só não há crime organizado cuidando do álcool porque ele é legal”. Ah, eu sei. O crime organizado, crianças, vai sempre tentar “organizar” o que é ilegal. Acompanharam até aqui? Sigamos.

Suponho que, legalizadas as drogas, continuarão proibidas outras modalidades de crime: assaltos, roubo de carros, pedofilia, tráfico de órgãos, de armas… Qual é a fantasia dos não-proibicionistas? Garotinhos dos morros, ao cair da tarde, andariam pelas praias da Zona Sul do Rio vendendo suas trouxinhas aos bacanas que aplaudem o ocaso… Não será assim. Os que estão envolvidos com o narcotráfico não costumam ter qualquer amor especial pela droga ou vinculação moral com ela. Estão nessa porque ela é proibida. Quando não for mais, mudarão de ramo e vão atuar, como direi?, em outras proibições. Sei: é difícil para certa mentalidade considerar que o crime é, sim, uma escolha, uma opção.

Mais: seguindo a lei da oferta e da procura, que Fernandes finge desconhecer, o preço das drogas, com efeito, despencaria. E o resultado seria a massificação do consumo. Evidência empírica: o alastramento do baratíssimo crack entre os miseráveis. E isso com, vá lá, alguma repressão. Imaginem sem nenhuma.

Não! Os Estados Unidos não são responsáveis pela desordem latino-americana no combate ao crime organizado. Até parece que é só com o narcotráfico… Ademais, curioso, não? A muito “liberal” Europa (com exceções), que compra alegremente a droga latino-americana, é menos responsável pelo flagelo do narcotráfico do que os EUA, que a reprimem? De resto, que influência os americanos têm na legislação de cada país sobre o consumo? Nenhuma! Ocorre, reitero, que se está flertando é com a legalização das drogas.

Gaviria
Quanto a Gavíria… É um bom homem. Já o entrevistei. Mas tem motivos pessoais que lhe turvam o juízo. Ele presidiu a Colômbia entre 1990 e 1994. Não está no grupo de presidentes que o antecederam e o sucederam que simplesmente cederam terreno às Farc. Mas também fracassou ao tentar combatê-las. Álvaro Uribe, seu adversário, foi inequivocamente bem-sucedido. O Plano Colômbia, em parceria com os EUA, é um sucesso. As Farc estão acuadas, e a Colômbia institucional é bem-sucedida no combate ao crime — inclusive o crime comum. Gavíria sabe disso.

No Brasil, há quem esteja tentando se convencer e nos convencer de que o usuário de maconha nada tem a ver com o produtor de maconha e com o traficante de maconha. Ah, tem, viu, Rubem Cesar Fernandes!? Tem, sim! Tio Rei é caipira e se lembra de ouvir música de Tião Carreiro e Pardinho em “eletrola” a pilha, à luz da lamparina. Orgulhosos, ouvíamos a dupla cantar que o café que “eles bebia” na cidade era prantado ali, por nós. Acompanhe, Fernandes, o raciocínio, redigido em caipirês:
A – eles queria bebê café
B – nóis prantava café
C – eles comprava nosso café
D – nóis ficava com a grana e escuitava música.

Assim, Rubem, nós e “eles” éramos elos de uma cadeia, sabe? Funciona com o café, com a maconha e picolé na praia. Nem maconheiro revoga a lei da oferta e da procura.

Inoportuno
Volto ao Brasil. FHC fez mal em entrar nesse debate. Até porque o jornalismo online não economizou ao lembrar que, enquanto a tal comissão falava em descriminalizar o consumo de maconha, a PF desbaratava duas quadrilhas de traficantes de classe média alta — e, aí, de drogas sintéticas. Sim, maconha já é coisa velha. Talvez a cocaína venha a se tornar obsoleta no futuro. As drogas sintéticas estão em ascensão. Se, um dia, pó e maconha puderem ser comprados na esquina, o tráfico vai se concentrar em substâncias que não poderão ser compradas na esquina, entenderam?

Ademais, os EUA não vão descriminar o consumo de drogas porque os americanos são contra. Aliás, os brasileiros também são. É que, por aqui, deu-se um jeito de fazer uma lei que é ignorada pela massa de reacionários — menos, claro, por aqueles que conhecem o seu DIREITO (???) de consumir drogas e de sustentar o narcotráfico. E que consideram uma ofensa que isso seja lembrado.


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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