Estudo traça perfil de usuários e estima que cracolândia movimenta, R$10 milhões por mês

27 de fevereiro de 202018min9365
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O levantamento, que vem sendo repetido desde 2016, investiga o perfil dos frequentadores da Cracolândia da Cena da Luz em São Paulo, quanto às suas características sociodemográficas, condições de saúde, histórico de uso de drogas e de tratamentos, e nível de vulnerabilidade social e comportamentos de risco. A onda mais recente do estudo, realizada em outubro de 2019, também investigou, utilizando uma metodologia diferenciada, como os usuários adquirem a droga e quanto gastam com ela diariamente. O estudo complementar sobre as questões econômicas do consumo  de crack estimou que os usuários gastam, em média, R$192,50 diariamente. Neste estudo complementar, os usuários foram questionados quanto a origem do recurso, já que mais da metade deles (53,9%) não tem qualquer tipo de renda ou benefícios. Foi constatado que a fonte do recurso utilizado para compra da droga é extremamente variável, com mais da metade (58%) obtendo recursos como pedinte, 44% e 46% através de furtos em estabelecimentos e pessoas, respectivamente, e 35% obtém o recurso através de prostituição dentre outras.

O Levantamento foi realizado pela Unidade de Pesquisas de Álcool e Drogas (UNIAD) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e é o primeiro a traçar o perfil dos frequentadores da região de forma sistemática através de séries históricas.

 COMO FOI FEITA A PESQUISA

O Levantamento do perfil dos usuários da Cracolândia de SP foi realizado em quatro momentos diferentes: em maio de 2016 com 122 participantes (índice de recusa de 87%), em maio de 2017 com 139 participantes (índice de resposta de 70%), novamente em junho de 2017 com 71 participantes (índice de resposta de 65%) e em outubro de 2019, com 240 participantes (índice de resposta de 83%).  Os resultados foram obtidos através de métodos mistos: para a investigação do perfil foram realizadas entrevistas com uma amostra obtida pelo método “tempo-localização”, que consiste na determinação dos perímetros de ocupação da população e seleciona os participantes em uma varredura em dias e horários aleatórios. Este método possibilita que os dados colhidos sejam representativos de toda a população alvo. A contagem populacional foi feita através de método de varredura sistemática, também com dias e horários aleatórios; já o estudo complementar para determinar os aspectos econômicos da obtenção da droga, envolveu a entrevista de 30 usuários selecionados através de amostragem por conveniência. O sucesso da metodologia levou a iniciativa de replicação do estudo em outras capitais do país, passando então a ser chamado de “Levantamento das Cenas de Uso de Capitais” (LECUCA). “Devido ao cenário extremamente complexo apresentado na Cracolândia, que é constituída por uma população flutuante e também varia quanto aos espaços que frequenta, tivemos que utilizar metodologias igualmente complexas, que permitissem que os dados obtidos de fato representassem toda a diversidade dos indivíduos que vivem no local.” Explica a pesquisadora responsável pelo estudo, Clarice Sandi Madruga.

Monitoramento do tamanho da população              

As estimativas do tamanho da população são realizadas desde 2016 utilizando uma metodologia desenvolvida especialmente para contabilizar o número médio de frequentadores da região levando em consideração as variações na ocupação do território e flutuações da concentração de usuários em diferentes dias e horários. O balanço inédito realizado pela UNIAD mostrou que, embora a população diminua significativamente nos períodos imediatamente depois de cada grande operação policial, o número total de usuários na região tem se mantido relativamente o mesmo através dos anos. Os resultados indicaram que atualmente o local possui uma média de 1.680 frequentadores (chegando a 2.018 usuários no período de pico pela manhã), o que indica uma estabilização em relação a 2017, por exemplo, quando a região atingiu 1860 frequentadores. “Comparamos os números de 2019 com maio de 2017, pois temos que ter parcimônia ao analisar as pesquisas de 2016 e a realizada pós-operação policial de agosto de 2017, devido ao contexto específico nesses momentos, seguidos das operações policiais no local. Nestas ocasiões a estimativa de frequentadores foram menores, com 709 e 414 em média, respectivamente. É possível então supor que a média de frequentadores normal sejam as estimadas em maio de 2017 e a mais recente, em outubro de 2019”, afirma o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, Diretor da UNIAD.

Sobre os frequentadores:

Com uma população composta por uma maioria de homens (aproximadamente 70%) com idade média de 36 anos, a comparação das diferentes ondas do estudo mostrou um aumento da população transgênero no período imediatamente após da operação de 2017, chegando a mais de 10%, que baixou para 7.5% em 2019.

Mais da metade dos frequentadores (51%) vem de fora de São Paulo, com 34,5% vindo de outros estados. Também foi constatada a existência de estrangeiros na Cracolândia, o índice já chegou a 3% em 2017, baixando para 1% em 2019.

Um dos resultados mais relevantes da pesquisa é referente ao conhecimento de onde os participantes viviam antes de ir para a Cracolândia. Os resultados e mostram que prevalecem os usuários que relatam ter vindo diretamente de suas casas ou da casa de suas famílias antes de ir pra região (78% em 2019), esse índice parece ser consistente, com prevalências semelhantes nas duas edições anteriores (74% e 78% respectivamente). Segundo a pesquisadora responsável pelo estudo, esse dado contraria uma concepção comum, de que a maioria dos frequentadores da cracolândia já estava em situação de antes do Crack.

“O fato de a maioria dos usuários virem de suas casas antes da Cracolândia mostra que esse fenômeno é, sobretudo, a consequência de uma dependência química grave, e revela a nossa ineficiência em oferecer tratamentos efetivos. Isso mostra em última análise, a importância de estratégias de prevenção e tratamento mais efetivas”.

O entendimento desse resultado por um olhar sociológico também evidencia a impotência da família nos casos de dependência grave, que culmina na quebra desses vínculos gerando a situação de rua. “Além da questão da prevenção, esse fenômeno poderia ser dramaticamente minimizado através de políticas públicas de amparo social e de cuidados mais articuladas e intersetoriais” diz a socióloga Gleuda Apolinário, uma das responsáveis pelo levantamento.

 

Motivações para estar na Cracolândia:

Segundo os usuários, dentre os principais motivos que os levam a frequentar a região estão: disponibilidade da droga (31,2%), segurança de uso entre os pares (20,4%), preço (16,4%) e liberdade para uso (14,8%).

Outro ponto que chamou a atenção na pesquisa foi o índice de que 82% dos usuários não frequentam nenhuma outra cena de uso além da Cracolândia da região da Luz.

 

Vulnerabilidade social:

A alta prevalência de usuários em situação de rua se repete em todas as edições da pesquisa, com 62% dos participantes de 2019 relatando não dormir sequer em abrigos ou albergues. Impressiona o alto índice de usuários vivendo nestas condições há 5 anos ou mais (42%).

Mais da metade dos usuários (65,3%) relatou viver e dormir todos os dias nas ruas da Cracolândia, quase 2 a cada 10 dizendo passar apenas os dias na região (17%) e menos de 10% referindo apenas ir para comprar a droga e ir embora.

Saúde Física e Mental:

A importância dos serviços de saúde oferecidos no local é retratada nos altos índices de usuários que referem já terem sido testados para doenças infecto-contagiosas, como Sífilis, HIV, Hepatite (B e C) e Tuberculose. Embora os índices dessas doenças sejam muito mais altos que na população geral (resultados através de auto-relato: 63% para sífilis, 10% HIV, 6% e 4% Hepatite B e C e 13% tuberculose), foi observado que uma proporção considerável dos usuários foi tratado, chegando a índices de 96% e 67% para os tratamentos de tuberculose e Hepatite B respectivamente. O índice de usuários que trataram Sífilis porém, foi relativamente baixo (14% dos que testaram positivo) e um índice ainda pior foi encontrado para a manutenção do tratamento do HIV, com apenas 8% entre os participantes que referiram ser positivos. Destaca-se também a queda do índice de mulheres que usam implante anticoncepcional, de 11% em 2017 para apenas 6% em 2019. Quanto a saúde mental, foi detectado que mais da metade dos participantes refere histórico de episódios psicóticos (58%) e mais de um terço (38%) refere já ter tentado suicídio.

Rede de suporte social e tratamento:

Mais da metade dos frequentadores da Cracolândia (53%) alega ter passado por algum tipo de tratamento para a dependência química, que vão desde grupos de mútua ajuda até assistência em hospitais.

Embora mais de um terço dos participantes referiu não ter ninguém com quem contar, 15% deles diz ter como referência algum profissional da assistência social e/ou saúde da região, demonstrando a importância da rede de suporte de saúde e social é o de utilização de serviços instalados na região. Quanto a utilização destes serviços, foi constatado que 74,3% dos usuários já utilizaram os serviços da Unidade Recomeço Helvétia, 71,8% do ATENDE 2, 64% do Bom Prato e 44,1% do CRATOD. Destaca-se que mais de um terço relata realmente querer interromper o uso e buscar tratamento.

“Esse número é um dos pontos que retrata as dificuldades do manejo e convencimento deste público para buscar tratamento, para sair da situação em que se encontra, exemplificando a necessidade da oferta de opções de tratamento e também de pessoas qualificadas e aptas  treinadas para abordar os usuários corretamente na cena de uso”, diz a socióloga Gleuda Apolinário

Influxo de usuários:

O estudo mostra que cerca de um terço dos frequentadores da Cracolândia é recém-chegada, residindo naquele ambiente há menos de um ano. Por outro lado, também foi observado que quase metade dos usuários vive na Cracolândia há 5 anos ou mais. Essa população mais antiga só diminuiu significativamente em junho de 2017, logo após a maior operação policial já realizada na região, em maio de 2017. Nesta ocasião observou-se um grande aumento de frequentadores novos, chegando a 43% da população total.

“Embora o estudo tenha a limitação de não acompanhar as mesmas pessoas através do tempo, tendo amostras diferentes a cada coleta, a interpretação dos resultados quanto ao tempo de permanência na Cracolândia combinado ao histórico e motivação para tratamentos, conclui-se que, possivelmente, as ações de saúde e assistência estão atingindo positivamente cerca um terço dos usuários da região, encaminhando  constantemente essa proporção dos usuários, porém, ao mesmo tempo, temos um influxo também contínuo, com a entrada de praticamente a mesma proporção de novos usuários que os substituem, mantendo a população praticamente constante ano a ano”, afirma Clarice Madruga, pesquisadora responsável pelo estudo.

A SAÍDA

A pesquisa de 2019 mostrou que são quatro os principais fatores que levariam os usuários a sair da Cracolândia – trabalho (44%), amparo familiar (32,8%), residência (20%) e tratamento contra a dependência (18,8%). Tais dados encontram respaldo em outras informações passadas pelos usuários, sobre quais fatores já os fizeram parar de usar drogas ou ao menos diminuir o uso no passado, onde são mencionados o apoio familiar ou de amigos (23,6%), exercer uma atividade remunerada (23,1%) e acolhimento em Comunidades Terapêuticas ou CAPS (22,6%) como os principais fatores.

“A dependência química é uma doença crônica e deve ser vista como tal. Nesse processo, cada indivíduo possui suas particularidades, como aceitação a determinado tipo de tratamento, eficácia de serviços sociais, enfim. É uma população muito heterogênea para se pensar em apenas uma solução. O que estes dados mostram é que não existe apenas uma receita para a solução do problema da Cracolândia. É necessária uma ação completa e sobretudo sustentada para a região, envolvendo a continuidade das ações de saúde, sociais e de segurança, criando uma rede capaz de atender a toda a diversidade de usuários que frequenta esse local”, afirma Laranjeira.


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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