Epitáfio para um Santo

4 de fevereiro de 202120min21
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por Marcos L Susskind (Moty)

Um grande homem é aquele que deixa os outros perdidos depois de partir. Paul Valery

A frase acima ilustra bem meu sentimento neste momento: triste, prostrado, perdido, deprimido e desolado.

Faleceu um grande homem. Grande em sua imensa humildade, imenso em seu saber, magnífico em sua comunicação. Homem sábio, altruísta, empático e humano.

Foi meu amigo, meu mestre, meu mentor e incentivador.

Escreveu livros, muitos livros.

A Wikipedia tem números diferentes nas diferentes línguas – o menor número citado são 63 livros, mas há menção a 85 também.

Um deles nasceu de uma conversa entre nós dois, numa Quinta Feira de 2001. Chegamos juntos muito cedo para as orações matinais – só nós dois dentro da Sinagoga. Ele me perguntou o motivo pelo qual apenas uma das primeiras 15 benções matinais tem o verbo no passado.

Eu, que rezava diariamente, nunca havia parado para pensar nisso.

Travamos uma conversa muito interessante sobre esta benção, derivamos para analisar por que motivo rezamos e “papeamos” por quase 40 minutos, até que começaram a chegar os demais e iniciar as orações.

Naquele dia ele sentou-se e começou a escrever mais um livro – talvez o mais bonito e mais ricamente apresentado de toda sua obra:

Prayerfully yours: Creating the bond between man and his Maker.

Tive a honra de ser agraciado com o primeiro exemplar saído da gráfica.

Seu nome: Abraham J. Twerski, para alguns o grande psiquiatra Dr. Twerski, Diretor Médico do talvez maior hospital católico dos EUA – St. Francis de Pittsburgh; para outros o cultíssimo Rabino Twerski e para quem lida com Dependência Química e se aproximou a ele – simplesmente Abe.

Abraham J Twerski faleceu hoje, 31/01/2021, 18 de Shvat.

A data Hebraica diz muito – 18 é o número que simboliza a vida no Judaísmo e o nome Twerski há de permanecer vivo por longos anos.

 

Quem foi este homem de valor e qual sua obra?

Abraham J Twerski nasceu em 6/10/1930, filho e neto de importante dinastia rabínica, fadado a herdar a posição ocupada por seus antecessores.

Seu pai era um reconhecido e competente mediador que aconselhava pessoas – um verdadeiro terapeuta.

Os Juízes da corte de Milwakee, sua cidade natal, indicavam os casos polêmicos a se aconselharem com o Rabino Jacob Twerski, seu pai.

Só caso ele não conseguisse mediar é que deveriam trazer o caso para a justiça.

O menino Abraham queria seguir seus passos, porém, já aos 21 anos, percebeu que os profissionais em Psicologia e Psiquiatria passaram a ser mais procurados que os líderes religiosos para cuidarem de seus problemas.

Foi assim que ele chegou à Faculdade de Medicina e à especialização em Psiquiatria. Um dia, em residência médica, apareceu uma pessoa no hospital, sem hora marcada, dizendo ser emergência e precisava ver um psiquiatra imediatamente.

Pensando tratar-se de suicida potencial, Twerski foi chamado.

Uma linda jovem, Isabela de 26 ou 27 anos, pede ajuda por ser alcoólica e Twerski não sabia como ajudar.

Ele tinha tido uma única aula sobre alcoolismo, de 55 minutos, em toda sua carreira escolar.

Twerski decide aprender de que se trata – e se torna um dos mais proeminentes médicos na área de Dependência Química.

Cerca de 50 de seus livros tratam da Dependência Química, da auto-estima, da valorização humana e temas ligados à recuperação da dependência, sempre em linguagem simples, acessível ao grande público.

Tendo se graduado Rabino Ortodoxo, Twerski também escreveu muitos livros analisando aspectos da religião, da fé, da oração e também reflexões sobre livros sagrados.

Quando trata de temas sagrados, assina seus livros como Rabino Abraham J Twerski mas quando trata de dependência química, auto estima etc, assina como Abraham J. Twerski, MD.

Twerski assumiu a direção do St. Francis Hospital de Pittsburgh quando uma das freiras lhe explicou a urgente necessidade de um Médico Psiquiatra naquele imenso hospital, onde 300 dos 750 leitos eram psiquiátricos.

Para efeito de comparação, o Sírio Libanês tem 466 leitos, o Einstein tem 620, o Hospital das Clínicas tem 810.

Ao assumir em 1965, Twerski se comprometeu a dirigir o hospital por um ano.

Ficou lá 20 anos, criou quatro centros de recuperação de Dependentes Químicos, lutou e instituiu a Dependência Química como matéria obrigatória nas Faculdades de Medicina e introduziu a matéria “Parenting” para alunos dos dois últimos anos do colegial na Pensilvânia.

Escreveu inúmeras histórias de ocorrências no hospital, na área de alcoolismo e

droga-adicção.

Uma delas, muito interessante. Twerski explicou a um padre católico, tratado por alcoolismo, que ele não poderia mais beber álcool.

O padre insistiu que na missa é obrigado a beber vinho e que se não pudesse mais oficiar a missa, ele se mataria.

Twerski tentou convencê-lo a usar suco de uva – mas as normas eclesiásticas não permitiam. Twerski ligou então ao assessor mais próximo do Papa, ex- Cardeal em Pittsburgh, com quem teve muito contato. Explicado o problema, o Cardeal disse que falaria com o Papa. Ciente do problema, o Papa autorizou que padres alcoólicos pudessem realizar a missa com suco de uva – um fato extremamente interessante onde um Rabino Judeu Ortodoxo contribui para mudança na liturgia da Igreja.

Twerski foi um Ser Humano extremamente acessível, disponível. Nosso primeiro contato se deu por telefone.

Eu precisava desesperadamente de uma ajuda e me indicaram o Dr. Luiz Alberto Chaves de Oliveira – Dr. LACO, que viria a se tornar outro grande amigo.

Laco me indicou dois livros que eu deveria ler de imediato – um deles de autoria de Twerski.

Eu estava mal e procurei o autor nos EUA.

Ele estava em viagem à Austrália.

Pedi desesperadamente à sua secretária que me desse o telefone – ela se negou.

Pedi que ele me ligasse a cobrar, eu estava em crise.

Twerski me ligou naquela tarde (não foi a cobrar) para me auxiliar.

Me indicou que fosse a uma reunião que só ocorria em igreja.

Expliquei que seria impossível – sendo Judeu, não me sentiria bem numa igreja.

Twerski me disse uma frase que nunca mais saiu de minha cabeça:

“Você tem de ir. Você não está indo lá para se converter, mas para buscar ajuda”.

Fui e conheci o Amor-Exigente, que me ajudou de forma inimaginável.

Em 1999, por sua inspiração, criei o primeiro grupo de mútua ajuda Amor-Exigente numa Sinagoga: o Grupo Tikvá.

Em 2001 estabeleci, com a ajuda de minha esposa, o JACS-Brasil, para ajudar dependentes e familiares de Judeus Dependentes Químicos em sua recuperação.

Mais de 5100 indivíduos, Judeus e não-Judeus receberam aconselhamento gratuito nestas duas instituições nos 17 anos em que minha esposa e eu as dirigimos.

Nunca cobramos um único centavo, na linha que aprendemos com meu amigo e mentor Abe Twerski.

Graças a seus ensinamentos, palestras, livros e vídeos, centenas de milhares de pessoas mundo afora conseguiram uma nova vida.

Infelizmente hoje o vírus Covid19 derrotou Abe Twerski e nos tirou este grande médico, Rabino, escritor, pensador – este Ser Humano ímpar.

O Mundo perde um grande homem, minha esposa e eu perdemos um exemplo de vida – tão importante em minha vida como meu inesquecível e amado pai, minha inesquecível e amada mãe.

Me tornei orfão pela terceira vez.


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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