Álcool à sombra ou assombra? A política brasileira sobre o álcool

2 de março de 202119min659

Marcelo Camargo/Agência Brasil [/Fotografo]
Qualquer pessoa que pense em descansar ou tirar férias, por vezes, associa seu lazer a momentos em que desfruta “sombra e água fresca”, no entanto, há aqueles que se sentem atraídos por substituir a referida “água fresca” por doses de bebida alcoólica. Dentre estes, há pessoas que ultrapassam o uso recreativo, sofrendo fortes desequilíbrios e assombrosas consequências à saúde, sem falar que o uso nocivo de álcool causa “perdas sociais e econômicas significativas para os indivíduos e para a sociedade em geral.”

Se o ditado popular “sombra e água fresca” significa situação cômoda e confortável, por outro lado, aquilo que assombra gera pavor, susto ou terror, sensações que podem resultar do uso nocivo de álcool, substância que causa mais de três milhões de mortes anuais, número que corresponde ao percentual de 5,3% das mortes em todo o mundo enquanto, “em geral, 5,1% da carga mundial de doenças e lesões são atribuídas ao consumo de álcool, conforme calculado em termos de Anos de Vida Perdidos Ajustados por Incapacidade (DALY, sigla em inglês).”

Registre-se que, mesmo na atual situação de anormalidade em razão da pandemia, o álcool continua gerando impactos negativos, pois a análise do resultado da pesquisa “Uso de Álcool e Covid-19”, desenvolvida pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), apontou que “35% dos entrevistados com idades entre 30 e 39 anos relataram aumento na frequência de um comportamento chamado de beber pesado episódico (BPE)”, o que confirma, também, ser necessário encarar o uso nocivo e a doença do alcoolismo como problemas de saúde pública, conforme alerta a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Apesar de o álcool estar presente há séculos nas diversas culturas ao redor do mundo, é importante analisar sem paixão a questão do seu consumo, em razão de não se tratar de substância inofensiva, mas capaz de causar prejuízos à saúde, o que se agrava nos casos do uso nocivo e da dependência, cabendo aos governos a “responsabilidade de formular, implementar, monitorar e avaliar as políticas públicas para reduzir o uso nocivo do álcool”.

Em outras palavras, gestores públicos deveriam lidar de modo responsável com a oferta e o consumo do álcool, o que poderia evitar que muitos usuários chegassem ao uso nocivo ou ao alcoolismo, investindo na prevenção, por ser medida eficaz, uma vez que o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (II Lenad), divulgado em 2012, apontou que o álcool é a droga que “contribui com cerca de 10% para a toda a carga de doença no Brasil” e “que mais gera violência familiar e urbana.”

A partir dessas reflexões, pergunta-se como os poderes públicos e a sociedade brasileira tratam o consumo de álcool, desde o uso recreativo até o nocivo e, também, a doença do alcoolismo? E indaga-se, ainda, como os poderes constituídos e as demais instituições encaram a questão do álcool frente à demanda social por essa substância? Em rápidas pinceladas, os destaques seguintes de trechos da Constituição Federal (CF), Leis Federais e outros dispositivos tem o objetivo de verificar como o Brasil normatiza as questões relacionadas ao álcool.

Antes de qualquer abordagem, levando em conta que a ciência indica ser o consumo de álcool desestabilizador da saúde, é importante lembrar que o artigo 196 da Carta Magna dispõe que a saúde é “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

A leitura do artigo 220, inciso II e § 4º, da CF permite entender que a propaganda comercial de bebida alcoólica estará sujeita a restrições legais, extraindo-se desse texto a referência que o álcool é nocivo à saúde, pois sua publicidade, sempre que necessário, conterá advertência sobre os malefícios do uso.

Um pouco mais adiante, no inciso VII do § 3º do artigo 227 da mesma CF, inserido no Capítulo que trata da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso, verifica-se proposta de programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins, fórmula que projeta estratégias para prevenir e atender casos de uso indevido e abusivo de álcool pelos adolescentes e jovens.

Ao proteger crianças e adolescentes, o texto do artigo 81, da Lei 8.609/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), proíbe a venda à criança ou ao adolescente de bebidas alcoólicas, enquanto o artigo 79, da mesma Lei, indica que revistas e publicações destinadas ao público infantojuvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, entre outros produtos.

O ECA, também, dispõe ser crime punido com pena de detenção de 2 a 4 anos, e multa, vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar, ainda que gratuitamente, de qualquer forma, a criança ou a adolescente, bebida alcoólica ou, sem justa causa, outros produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica.

O artigo 20 do Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013), ao cuidar da saúde e da qualidade de vida do jovem, indicou a necessidade da adoção das seguintes ações: capacitação dos profissionais de saúde para lidar com temas relativos ao abuso de álcool, tabaco e outras drogas; habilitação dos professores e profissionais de saúde e de assistência social para a identificação dos problemas relacionados ao uso abusivo e à dependência de álcool, tabaco e outras drogas e o devido encaminhamento aos serviços assistenciais e de saúde; valorização das parcerias com instituições da sociedade civil na abordagem das questões de prevenção, tratamento e reinserção social dos usuários e dependentes de álcool, tabaco e outras drogas; proibição de propagandas de bebidas contendo qualquer teor alcoólico com a participação de pessoa com menos de 18 anos de idade; veiculação de campanhas educativas relativas ao álcool, ao tabaco e a outras drogas como causadores de dependência; e articulação das instâncias de saúde e justiça na prevenção do uso e abuso de álcool, tabaco e outras drogas, inclusive esteróides anabolizantes e, especialmente, crack.

Por outro lado, no campo da segurança no trânsito notou-se um esforço legislativo, a partir da instituição do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/1997), que criminalizou e puniu com maior rigor o motorista que bebe e dirige. Referida Lei sofreu alterações sequenciais que destacaram o risco do beber e dirigir, aumentando a punição prevista ao autor dessa grave infração.

Na esfera do Poder Executivo, o Decreto 6.177/2007 aprovou a Política Nacional sobre o Álcool, trazendo medidas de redução ao uso indevido de álcool e sua associação com a violência e a criminalidade, bem como apontou outras providências, prevendo que a implantação dessa Política Nacional deveria ser iniciada justamente com medidas opostas ao uso indevido do álcool e que enfrentassem a associação do consumo dessa substância à violência e à criminalidade.

Por seu turno, o poder Judiciário é, em suas variadas instâncias, chamado a aplicar e interpretar as leis no aspecto individual ou coletivo, tanto que, atualmente, diversos olhares estão voltados ao STF em razão de a pauta dessa Corte prever o julgamento de temas relativos ao álcool, como aqueles que envolvem a venda de bebidas alcoólicas nas margens de rodovias federais (Ação Direta de Inconstitucionalidade 4017) e nos estádios de futebol do Estado de Minas Gerais.

Caso o STF preserve entendimentos antes adotados em relação à pandemia da covid-19, espera-se que a Corte enfrente essa pauta extraindo diretrizes do princípio da precaução, da “proteção estatal suficiente”, da defesa do consumidor vulnerável, da segurança pública nas cidades e do trânsito seguro. Desse modo, o STF preservará valores caros à sociedade brasileira, sustentados de modo amplo pelo texto do artigo 196, da CF e, também, promoverá adequado balanceamento entre diversos interesses em jogo e, ainda, orientará medidas estatais que não causem dano nem agravem a saúde do povo.

O Conselho Nacional do Ministério Público, por sua vez, editou a Resolução 221/2020, que dispõe sobre a atuação do Ministério Público na audiência de custódia recomendando ao membro do Ministério Público que dela participar formular questionamentos suplementares para verificar, entre outras situações, “histórico de (…) dependência química, para analisar a hipótese de requerer encaminhamento assistencial e a concessão da liberdade provisória, com a imposição de medida cautelar, ou encaminhar o caso para o órgão do Ministério Público com atribuição para a curadoria de saúde.”

Esse ponto da Resolução procura despertar a atenção do promotor de Justiça para eventual abuso de álcool e, se for necessário, orienta propor ou requerer providência para acolher, tratar, recuperar ou apoiar a reinserção social do infrator, medida de caráter individual que encontra forte justificativa no impacto que o uso nocivo e a dependência do álcool geram aos sistemas de saúde, social, segurança pública e justiça.

A análise desses dispositivos constitucionais, legais e regulamentares visa demonstrar que apesar de existir arcabouço normativo, os dados e as referências científicas antes citadas, sugerem que os efeitos do álcool à saúde e sociedade recomendam medidas práticas e efetivas para reduzir o consumo e a oferta dessa substância e, também, tratar casos de uso nocivo e dependência, o que requer o fortalecimento geral da Política Brasileira sobre o Álcool.

Acerca disso, os poderes públicos e a sociedade brasileira, usando expressões usuais, frequentemente, “lavam suas mãos” diante do incômodo tema do consumo e da oferta do álcool, deixando de agir precocemente naquilo que deveriam fazer com esforço conjunto, ajudando o indivíduo que faz uso nocivo do álcool e o doente alcoólico não se tornarem inválidos e, também, apoiando as famílias destruídas em razão dessa substância, não somente oferecendo amparo financeiro tardio às pessoas incapacitadas pelo álcool, evitando “chorar pelo leite derramado”.

Se a indústria e o comércio, e mesmo o Estado, são beneficiados pela distribuição, venda e consumo do álcool, em contrapartida, indivíduos, famílias, empregadores e outros segmentos da sociedade sofrem elevados prejuízos, os quais certamente superam os benefícios do lucro e da carga tributária, a indicar que as Políticas Públicas sobre o Álcool devem promover ações que reduzam “os níveis, padrões e contextos do consumo de álcool, assim como em relação aos determinantes sociais mais amplos da saúde” considerando “os problemas de saúde, segurança e socioeconômicos atribuíveis ao álcool.”

Em arremate, necessária a reflexão dos poderes públicos e da sociedade sobre a eficácia e o custo-efetividade de medidas que reduzam a oferta e o consumo de álcool, buscando adotar, por exemplo, ações e estratégias propostas pela Opas aos desenvolvedores de política pública sobre o álcool, a seguir transcritas, de modo que a Política Brasileira sobre o Álcool enfrente sem assombro diversas questões associadas ao álcool:

a) Regular a comercialização de bebidas alcoólicas;

b) Regular e restringir a disponibilidade de álcool;

c) Promulgar políticas adequadas de condução sob os efeitos do álcool;

d) Reduzir a demanda por meio de mecanismos de tributação e preços;

e) Sensibilização para os problemas de saúde pública causados pelo uso nocivo do álcool e garantia do apoio a políticas eficazes;

f) Fornecer tratamento acessível para pessoas com transtornos relacionados ao uso de álcool; e,

g) Implementar em serviços de saúde programas de identificação e intervenção breve para consumo perigoso e nocivo de álcool.”

Fonte: https://congressoemfoco.uol.com.br/


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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