Por que comprei heroína para dar à minha filha dependente

21 de março de 201723min5
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 BBC 

Em relato à BBC, mãe relata sofrimento para ajudar filha a superar vício em heroína (Foto: BBC) 

“Ela estava encharcada de suor, vomitando, chorando, histérica, tremendo. Sentia-se terrivelmente mal, completamente desesperada. Eu tinha a sensação de que estava presa em um canto, como se não houvesse mais nada que pudesse fazer.” 

“Daí, falei com ela: existe alguma maneira de resolvermos isso ‘na rua’?” 

Foi assim que uma mãe britânica descreveu, em entrevista à BBC, como acabou comprando droga para a filha, viciada em heroína, que passava por uma crise de abstinência. 

Leia abaixo o depoimento:

Tudo começou há cinco anos, quando minha filha tinha 18 anos e estava passando por mudanças em sua vida. Os amigos dela haviam ingressado na faculdade e ela tinha acabado um namoro em que estava muito feliz. 

Seu comportamento e sua personalidade começaram, então, a mudar. 

Antes ela era trabalhadora, adorava seus cavalos, mas deixou tudo de lado. Passou a dormir muito durante o dia. 

E eu lhe perguntava frequentemente o que havia de errado. 

Minha filha começou a se envolver com pessoas que não eram de boa índole. A maioria delas usava drogas. 

Um dia, estávamos voltando de carro de um lugar e eu lhe perguntei novamente o que estava acontecendo. 

“Imagine o pior”, respondeu ela. 

“Você está grávida?”, perguntei. Hoje, vejo que isso não seria um problema. Teria sido ótimo se ela respondesse que sim, porque a verdadeira resposta foi: “Não, não, mãe. É muito pior do que isso. Pense na pior coisa do mundo.” 

“Você é viciada em drogas?”, perguntei. Ela disse que sim e começou a chorar compulsivamente. 

Foi o pior dia da minha vida. 

Conversamos sobre como poderíamos parar o vício algumas vezes. Falávamos sobre isso como mãe e filha e, justamente por causa disso, às vezes, perdíamos as estribeiras. Há um misto de emoções em jogo: em uma hora você está gritando e zangada; em outra você está profundamente triste. 

Meu cunhado era usuário de drogas e morreu de depressão enquanto tentava abandonar o vício. 

Acho que meu marido considerava a morte do irmão como um desperdício, porque achava que ele poderia contribuir com algo valioso para nossa família e para a sociedade. 

Acredito que senti o mesmo com a minha filha. Ela tinha muito a oferecer e não queria vê-la tomar decisões erradas. 

Naquela época, minha família não considerava que o vício dela era um problema. Por várias vezes, minha filha falou que usava drogas “apenas por diversão”. 

Porém o uso da droga era intervalado com episódios de depressão e não havia diversão nenhuma ali. Mas ela não estava pronta para admitir isso. 

Em determinado momento, demos a ela um ultimato. Olhando para trás, não sei se foi a decisão certa, mas disse: “Se você continuar usando drogas, não poderá continuar a viver nesta casa”. 

E nós a expulsamos de casa, porque ela continuou a usar drogas. 

Quando o vício piorou, suas amizades se deterioraram mais e mais. 

Passei a odiá-la. Muito. 

Achava que ela tinha todo o poder do mundo para abandonar o vício, mas não queria. Nada que seus filhos façam vai fazer com que você deixe de amá-los, mas eu sentia um ódio dela muito forte. Estava com muita raiva. Queria sacudir os ombros dela e dizer: “Olha o que você está fazendo consigo mesma!”. 

Sempre fui uma mãe muito controladora. Meus filhos tinham hora para dormir, comiam legumes e verduras. Mesmo assim, nunca senti como se tivesse controle. Nunca consegui dizer para ela: “Não, você não vai sair hoje. Você precisa voltar para casa e dar um rumo na sua vida.” Até porque ela me responderia: “Eu sou maior de idade. Faço o que quiser”. 

Fiquei decepcionada. Porque tinha grandes expectativas do que ela poderia alcançar. Ela não estava conseguindo alcançar nada naquela ocasião, embora as coisas tenham começado a mudar quando ela percebeu que não estava feliz. 

Ela se alistou no Exército, na Polícia Militar. Após participar do treinamento básico, em que foi muito bem, conseguiu um bom emprego. 

Pensamos, então, que ela havia superado seu vício nas drogas e dado um rumo à sua vida; ficamos muito orgulhosos. Lembro-me de pensar: “Meu Deus, ela conseguiu. E fez isso de forma incrível – ela realmente conseguiu um emprego muito bom”. Não passaria pela nossa cabeça que o problema não havia desaparecido. 

Ela ganhava um bom salário, mas depois de um ano começamos a receber telefonemas. Ela continuava a dizer: “Não sei com que gastei todo o meu dinheiro, mãe, só sei que gastei. No fim do mês, estou sem nada e não tenho dinheiro nem para comida”, repetia ela. 

Sendo assim, nós passamos a enviar a ela um adiantamento todo mês. Não estávamos dando-lhe dinheiro, mas sim um adiantamento, até ela receber o próximo salário. 

Durante todo esse tempo, ela tinha um problema, mas acredito que ela escondia isso de nós porque se sentia envergonhada. 

Ela continuou, no entanto, a se envolver com as mesmas pessoas, então a víamos muito pouco aos fins de semana. Só voltava para casa na segunda-feira. 

Mas isso começou a afetar seu trabalho. Percebemos que ela estava exausta. Estava cansada de sair todo fim de semana e conciliar essa vida com um trabalho em tempo integral. 

Quando você não dorme de quinta-feira à noite até segunda-feira, quando tem de voltar ao trabalho, você fica exausta – e foi isso que aconteceu com ela. Acredito que os colegas e o chefe dela tenham começado a perceber algumas mudanças, porque passamos a receber telefonemas do Exército. 

Um dia, voltando para casa de carro depois do trabalho, não tendo dormido por dias, ela destroçou o carro no canteiro central de uma rodovia. Eu e meu marido percebemos que se não a parássemos, ela se mataria ou mataria outra pessoa. E quando o Exército me ligou naquela semana, fui sincera: “Você deve saber disso; acho que minha filha se droga nos fins de semana, ela precisa fazer um teste antidrogas”. 

E foi assim que ela perdeu o emprego. 

Tenho certeza de que ela ainda guarda rancor de mim por ter feito isso, mas sinto que salvei a vida dela ou de outra pessoa, porque seria uma questão de tempo antes que ela causasse um grave acidente de trânsito. Ficaria com a minha consciência pesada para sempre. 

Depois disso, ela passava os dias no sofá. Ela ia de um sofá para o outro, de uma boca de fumo para outra. Ela também perdeu a permissão de dirigir por ter ingerido drogas. 

Ou seja, deixou de ser uma mulher independente para não ter basicamente nada. Em dada ocasião, uma das casas onde ela ficava pegou fogo – por sorte ela não estava lá. E acabou perdendo todos os seus pertences. Tudo mesmo. 

Assim, todas as vezes que a víamos, tudo dependia do estado de espírito dela e da nossa vontade de aceitá-la pelo que ela era, e amá-la incondicionalmente. 

Mas em determinado momento brigamos feio, e ela disse que não queria mais manter contato conosco. Paramos de nos falar por três meses. 

Finalmente, ela nos ligou e disse que queria voltar a conversar. 

Imagino que deixar de falar conosco faria com que ela se sentisse melhor, porque, no fim das contas, éramos um lembrete constante de que a vida dela estava indo pelo ralo – ninguém mais falava disso com ela, mas nós, sim, claro. 

Então, voltamos a nos falar e ceamos juntos no Natal. Esse momento ficou gravado na minha memória porque tenho certeza de que ela consumiu drogas durante a noite e não conseguia ficar acordada. Ela dormiu com a cara no prato de comida. Era um indicador de como as coisas tinham ficado ruins. 

No início, minha filha disse que tomava drogas para se divertir. Depois de se tornar usuária pesada de drogas por cinco anos, ela passou a falar que o vício era para ajudá-la a anestesiar o que sentia e a fugir da realidade, para não ter no que pensar e com que se preocupar. 

Naquele estágio, não acho que ela realmente usufruía das drogas. Tampouco acredito que ela confiasse em muitas pessoas, inclusive em mim, porque você fica paranoica com tudo e com todos. 

Ninguém pode ajudar. Ninguém sabe o que dizer. Todo mundo fica desesperado por uma boa notícia. 

Às vezes, íamos a terapeutas particulares. Tivemos muitas conversas com ela sobre como planejar o futuro. “Se você fizer isso ou aquilo, talvez você possa ficar longe das drogas”, dizíamos. 

Chegamos, inclusive, a trancá-la no quarto. 

Meu marido selou as janelas e trancou a porta, mas de nada adiantou. Porque cabe à pessoa querer mudar – e ela não queria mudar. 

No fim das contas, um de seus amigos, que usava drogas com ela, veio até a nossa casa, ameaçou meu marido e nos mandou tirá-la dali. 

Em outro momento, soubemos que minha filha foi pega roubando no trabalho para financiar o vício. 

Ela também furtou uma folha de cheque do meu talão de cheques. Assinou um cheque de mil libras e o descontou. Tivemos que denunciá-la à polícia. 

Tínhamos tentado tudo o que estava ao nosso alcance. Somos muito éticos, e temos dois filhos mais novos observando nosso comportamento e nossas decisões. Queremos que eles vejam que não se rouba dinheiro da família. Ponto final. 

Levamos pessoalmente nossa filha ao tribunal, sentamos junto dela e falamos com ela: “Estamos aqui junto com você, mas você não vai mais fazer isso – você não pode roubar da gente”. 

O juiz determinou que ela começasse uma reabilitação. Em outras palavras: ela teria de ser submetida a um teste antidrogas duas vezes por semana, começar um programa de metadona (narcótico usado para tratar viciados em heroína) e participar de sessões de terapia em grupo para dependentes químicos. 

Ela também teve de usar tornozeleira eletrônica por três meses, o que a forçava ficar em casa das 7h às 19h. 

Queríamos ajudá-la de alguma forma, mas não tínhamos a quem pedir ajuda. Então, pensamos que essa seria a melhor solução possível. Do contrário, ela acabaria na prisão. 

Saímos do tribunal por volta das 14h30 ou 15h, e perguntei ao oficial de Justiça: “Quando ela tem de começar?” 

“Neste momento”, respondeu ele. 

“Ou seja, temos de voltar para casa?”, perguntei. 

“Sim. Porque as pessoas que colocam a tornozeleira eletrônica podem aparecer a qualquer momento”, respondeu. 

“E sobre o vício em drogas da minha filha?”, perguntei. 

“Procure um hospital público”, rebateu. 

Fomos, então, a um hospital público. Mas lá me disseram que minha filha era problema meu e teria de viver conosco. 

Como você vai viver com alguém que tem o hábito de roubar cem libras (cerca de R$ 380) por dia de você, que irá provavelmente gritar, chorar, vomitar e quebrar coisas porque está frustrada e em pânico? 

O hospital público não fornece metadona de graça. 

Eu não comprei heroína pessoalmente. Só dirigi meu carro para um local e quando chegamos lá, ela saiu, se injetou e voltou. Mas de alguma forma, senti algo estranho comigo mesma, porque fiz algo que nunca me imaginaria fazendo. 

Meu marido, por outro lado, se sentiu completamente traído. Ficou muito triste. 

Ele achou que eu traí a confiança dele ao levar minha filha para comprar drogas porque uma das coisas sobre a qual nós concordamos anos atrás, logo depois que nossa filha admitiu ter esse problema, era que nós ofereceríamos todo o apoio necessário, mas nunca financiaríamos o vício dela. 

Nunca lhe daríamos dinheiro ou presentes, já que sabíamos que ela usaria tudo isso para comprar drogas. 

Quando eu cheguei em casa e contei a meu marido o que havia feito, ele ficou realmente louco, e por dias a fio. E decidiu enviar um e-mail à BBC contando a história da nossa filha. 

Prometi a ele que nunca faria aquilo novamente. E ele me disse que, se eu quisesse continuar fazendo aquilo, seria por minha própria conta em risco. 

Ele tem um pensamento preto e branco para a vida, como acho que muitos homens têm. Mas se existe algo que aprendi durante os últimos oito anos, é que não há preto e branco. Há uma grande área cinzenta no meio. Tivemos várias conversas sobre isso. Não faria o que fiz agora. Acho que voltaria ao hospital público e insistiria até conseguir algum tipo de medicação para a minha filha. 

Agora, ela está recebendo metadona. Ou seja, tem de tomar uma quantidade de metadona prescrita pelo médico todos os dias. 

Ela vai até a farmácia, pega o remédio e tem de tomá-lo na frente do farmacêutico. Ainda não teve efeitos colaterais, mas também não se drogou mais. 

A medicação impede que ela se sinta mal, e a mantém ativa durante o dia. Ela tem ajudado a limpar a casa e a fazer chá. E, aos poucos, vem tomando cada vez menos metadona todos os dias. A meta é não precisar mais do remédio em seis meses. 

Antes de comparecermos diante do juiz, ela disse para mim. “Para mim, chega. Isso é horrível.” Ela já tentou se suicidar duas vezes. Numa das ocasiões, ela ficou em estado grave. Na outra, teve um dano no fígado. 

Desde que ela começou a reabilitação, encaramos um dia após o outro. Foram cinco anos até chegarmos a esse ponto. 

Nossa filha agora tem seu próprio canto, que nós mesmos construímos como um anexo da nossa casa. E ali ela tem privacidade. Batemos na porta, por exemplo, para entrar. Ela também passou a conviver novamente com o cachorro dela. 

Sei que é orgulho de mãe, mas ela é muito linda e inteligente. Acredito que ela poderia ser qualquer coisa que quisesse. Ela ama tanto os animais que falava sobre a possibilidade de se tornar veterinária, e sonhávamos com isso anos atrás. Mas tudo acabou sendo diferente do que planejávamos. Agora o sonho é diferente. Trata-se apenas de “eu quero que ela abandone o vício e seja feliz”. 

Sinto-me 50% responsável pelo que aconteceu, pois acho que todas as mães se sentiriam assim. Mas também me sinto orgulhosa de que ainda estou aqui, sã e de pé. 

Por outro lado, dia desses acordei pensando que tudo foi culpa minha. Talvez se eu não a tivesse expulsado de casa naqueles primeiros meses quando ela se recusou a largar as drogas…é difícil saber. 

Hoje tenho confiança de que ela não irá mais nos roubar. Deixo minha bolsa no chão, por exemplo. Não me preocupo com isso. 

Mas ainda não sei se ela vai deixar de entrar em contato com as pessoas erradas, pois isso é um processo lento. 

Quando minha filha voltou para casa, tinha certeza de que ela não confiava em mim. 

Ela sabia que eu vasculhava o quarto dela à procura de droga. 

Mas parei de fazer isso agora, porque acredito que temos de reconstruir a relação de confiança mútua entre mãe e filha.


Sobre a UNIAD

A Unidade de Pesquisa em álcool e Drogas (UNIAD) foi fundada em 1994 pelo Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira e John Dunn, recém-chegados da Inglaterra. A criação contou, na época, com o apoio do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. Inicialmente (1994-1996) funcionou dentro do Complexo Hospital São Paulo, com o objetivo de atender funcionários dependentes.



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